O amor não tem cor?

Como viver a própria sexualidade que quer explodir? E como dar vazão ao desejo num espaço onde a homofobia impera ao lado da hipocrisia religiosa? Cada vez mais, a comunidade gay consegue sustentar seu discurso à favor da liberdade de expressão — sexual, identidade e idealista — dentro de uma sociedade ainda repressora. Filhos de Deus (lançado também com o ridículo título Amantes do Caribe) é mais uma prova cinematográfica resultante deste processo — gradual, diga-se de passagem — que quer combater os eternos tabus sociais que jamais se apagam. Como entender as relações entre dois homens? O que fazer para a sociedade reparar seus atos de crueldade e preconceito perante homossexuais? Mais que um estudo sobre os percalços, anseios e motivações da predestinação queer, este filme impressiona por apresentar um tocante, não menos realista, amor interracial entre dois homens. Aqui a narrativa centra-se nas belas praias das Bahamas, conhecemos Johnny (Johhny Ferro), um artista introvertido que sofre bullying dos moradores locais por conta de seu comportamento considerado esquisito e pela sua opção sexual. O jovem não consegue viver tranquilo já que sofre por conta de sua sexualidade, então se firma na negação e foge de maiores contatos afetivos para não se frustrar. Ao vivenciar uma crise de inspiração, o artista é aconselhado por sua professora a passar uma temporada na Ilha de Eleuthera, no intuito de recuperar o fôlego da criatividade. Ao conhecer o atleta Romeo (Stephen Tyrone Williams), seu destino muda, é quando o sentido mais dramático do roteiro evidencia seu caráter principal: existe uma atração sexual inevitável entre os protagonistas, um sentimento que pode provocar uma violenta catarse nas vidas de cada um. Mas, o filme apenas não se resume a esse senso, há mais discussões polêmicas por aí.

O diretor Kareem Mortimer conduz com muita atenção a trajetória de amor, desejo e estranheza de seus dois garotos. Interessante que a personalidade de Johnny é bem diferente de Romeo, mas ambos vivenciam os tormentos de uma repressão sexual visto que a sociedade eterniza uma indisposição aos seus impulsos libidinais e existenciais. Se Johnny busca a si mesmo nas ruas de Nassau, é Romeo que sofre por conta da família que insiste em providenciar um casamento com uma antiga namorada. É a típica discussão que prevalece neste sentido: o homem que tem que mascarar sua sexualidade para se enquadrar socialmente, ainda mais quando a sociedade costuma cobrar casamentos heterossexuais e filhos. E Mortimer mostra a relação de Johnny e Romeo bastante trágico e proibido, desde o começo. A cena que ambos dançam, corpos nus, sem música, apenas no embalo do calor dos corpos, é um dos momentos mais bonitos já concebidos na representação da cinematografia homoafetiva.

Paralelo aos personagens principais, há ainda subtramas que sustentam o apelo militante contra ao preconceito ao homossexual. Há Lena (Margaret Laurena Kemp, atuação notável), casada com um pastor homofóbico que, na verdade, é um gay enrustido que se envolve sexualmente com garotos secretamente — contundente a postura dessa personagem que vivencia o tormento de uma vida mascarada, além de apresentar intolerância religiosa contra à homossexualidade, podando até seu filho que, ainda criança, já apresenta um “comportamento suspeito” que ela acredita ser condizente com o caráter homossexual.

O roteiro de Mortimer tem uma forte discussão sobre a homofobia, por isso insere inúmeros diálogos bem reflexivos que induz o espectador a pensar sobre essas questões. Mas, o que torna mais admirável é a química sensual e interpretativa do par central, por sinal bem caracterizado pelos atores Johhny Ferro e Stephen Tyrone Williams que sustentam o apelo da libido, do amor e da barreira que dificulta a relação de apenas dois homens que queriam viver um para o outro. Sob o véu das questões raciais, homoafetivas e das intolerâncias religiosas, este é um trabalho que acaba por tocar nas feridas sociais sem medo. E só por promover essa reflexão já vale uma conferida.

Children of God (EUA, 2010)
Dirigido por Kareem Mortimer
Escrito por Kareem Mortimer
Com Johnny Ferro, Stephen Tyrone Williams, Sylvia Adams

Meninos não choram?

A dolorosa realidade de uma criança que precisa lidar com sua sexualidade. Laure (Zoé Héran) tem 10 anos, acaba de se mudar com sua família para um bairro novo nos arredores de Paris. O que esconde essa garota? Ela se veste como um típico garoto de sua idade, anda com meninos da sua faixa etária, mantém os cabelos bem curtos em plena rebeldia. Para todos os garotos de sua comunidade seu nome é Michaël. Como entender as motivações dessa criança que já vive em conflito consigo própria? Até quando ela poderá enganar a todos? Dirigido com bastante cuidado por Céline Sciamma, também roteirista, Tomboy é um filme surpreendente que trata de um tema tão atual e já trabalhado em outras abordagens. Contudo, aqui o discurso ganha um novo frescor por conta de um argumento ainda necessário a ser discutido, até por conta do foco narrativo adotado pela diretora que sabe tratar de uma temática tão polêmica com embasamento humanístico. Logo no início, observamos nos créditos do título as cores que se alternam — o azul que se associa ao masculino e o vermelho ao feminino —, recurso visual utilizado como elemento simbólico para as questões do gênero sexual que o filme irá tratar. Este trabalho abriu a Mostra Panorama do Festival de Berlim, onde obteve sucesso de público por lá e já tem sido comentado em muitos festivais de cinema LGBT pelo mundo afora.

O nome “Tomboy”, por sinal, se refere originalmente ao termo “garoto bagunceiro”, que passou a ser utilizado por volta de 1950 como “menina que se comporta como menino” (de acordo com o Dicionário Etimológico). Na Inglaterra o termo também denomina garotas que gostam de jogar futebol, lutar e brincar de carrinhos; são chamadas de “menina-moleca”. Seguindo esse sentido que se compreendem as afirmações de Laure/ Michaël que adota atitudes, comportamentos e posturas masculinas para mascarar sua feminilidade — a menina inibe qualquer aspecto que reforce sua condição de mulher, visto que isso é um incômodo incondicional à sua natureza. Entende-se que não seja um caso de homossexualidade, mas sim de gênero sexual, já que ela se sente como um menino ainda que seu corpo renegue toda essa condição.

Como forma de estabelecer um contato do espectador com sua protagonista, a direção de Sciamma investe em cenas onde mostra a jovem andrógina tendo que esconder para todos os amigos sua verdadeira identidade, principalmente para Lisa (Jeanne Disson), a única garota do grupo que acaba sentindo-se atraída por "ele". E é justamente nesse ponto que o roteiro torna-se mais ousado, visto que coloca as figuras infantis, no período da inocência, tendo teus sentidos desabrochados à favor de uma sexualidade iminente. A atriz Zoe Héran é talentosa, impressiona pela atuação concentrada e bastante emotiva. O cuidado interpretativo provém da meticulosa direção de Sciamma que promove atuações naturais de seu elenco infantil.

O roteiro acredita na inteligência e sensibilidade de suas crianças que sabem o que quer — é até assustador a maneira como Laure/ Michaël sofre por sentir-se inadequada socialmente já que não se enxerga como uma menina. A criança repudia qualquer traço feminino numa total aversão. E o público, obviamente, é facilmente atraído por essa menina que além de ser o foco problemático da trama é um elemento de reflexão diante de tanta expressão comportamental e desconforto sexual com tão pouca idade. Diferente de “Meninos Não Choram”, onde havia uma constante tensão que beirava ao caos vivenciado pela personagem de Hilary Swank, aqui o discurso prefere seguir outra vertente. Não há um teor denso e hiperdramático, as situações ocorrem de maneira mais sóbria, mas isso não quer dizer que haja uma concentração otimista constante na narrativa.

O filme mostra ainda a alienação familiar e ausência maternal, já que a mãe (Sophie Cattani) demora a encarar que a filha assume uma outra identidade. Efetivamente, mostra como os pais acabam por manter uma cegueira em relação aos seus filhos, ainda que não queiram. Polêmica também a situação da irmã de Laura/ Michaël, Jeanne (Malonn Lévana), uma criança de apenas 6 anos de idade que acaba sendo cúmplice do disfarce de sua irmã. As atuações mirins são bem intensas, expressivas. É um tabu debater a sexualidade na infância e Sciamma é corajosa nesse sentido, sem que seu filme perda qualquer traço de sensibilidade, nunca é forçado. Todo filmado em digital com câmeras Canon 7D, o filme se firma em planos-sequências que acompanham a atmosfera de seus personagens infantis, porém são os closes direcionados na bela face da atriz Zoé Héran que elevam o tom intimista da película.

Tomboy (FRA, 2011)
Dirigido por Céline Sciamma
Roteiro de Céline Sciamma
Com Zoé Héran, Malonn Lévana, Jeanne Disson

Juventude atormentada?

É possível entender o que ocorre na mente de um ser humano que sofre nas mãos de outro? E o que fazer para compreender quando, muitas vezes, um crime é consequência de algo que pode ser justificado, ainda que não aceitável? Diversos filmes e documentários já exploraram chacinas de jovens estudantes vitimados por conta de colegas de escola — Michael Moore com o seu “Tiros em Columbine” ou mesmo o aclamado “Elephant” de Gus Van Sant já debateram temas semelhantes, ainda que sob óticas e abordagens que percorreu outros horizontes. Mas, nenhum foi mais visceral e contundente que o tenso A Classe. O filme produzido na Estônia, país onde não existe tanto investimento no quesito cinematográfico, é um soco violento no estômago, talvez um dos trabalhos mais densos já feitos nos últimos anos. É extremamente assustador. A narrativa estuda minuciosamente um estudante, Joosep (Pärt Uusberg), um típico garoto introspectivo e tímido, que torna-se piada da turma. O diretor e também roteirista Ilmar Raag explora as percepções desse indivíduo que é constantemente torturado físico e psicologicamente pelos seus colegas da turma — alvo de pancadas, xingamentos e abusos tanto dos “valentões” quanto até das meninas, Joosep se vê num clima insuportável crescente. A situação parece ainda tomar proporções mais caóticas quando Kaspar (Vallo Kirs), um dos colegas, decide tomar uma posição de defesa na turma à favor do garoto ameaçado por todos. É então que esses dois garotos tornam-se vítimas de um ambiente de degradação, marginalização e crueldade coletiva.

O filme tem uma linguagem bem crua, natural e objetiva. Uma espécie de documentário “latente de imagens reais”. A ágil edição de Tambet Tasuja favorece esse contexto. E é um auxílio à narrativa que investiga em sete dias as humilhações, o sufoco e a overdose de torturas físicas e psicológicas vivenciadas pelos dois garotos. Numa edição febril e veloz, observa-se os traços comportamentais de cada personagem — é nítido a exploração de diálogos que evidenciam a violência que se sustenta nas salas de aula, vestiários, corredores e demais dependências da escola. A instituição torna-se um ambiente tenebroso, onde professores são omissos e parecem alienados à turbulência emocional vivenciada por Joosep e Kaspar. Surpreendente como a escola torna-se um ambiente engolido por uma atmosfera carregada de tensão, desespero e tristeza. Não é um filme nada fácil de se ver.

O bullying aqui ganha forma, tom e nunca foi tão bem delineado. A maneira como a direção cuidadosa de Ilmar Raag explora as situações mais banais, e até as que não se espera, faz com que o espectador tenha comoção pelos seus personagens centrais. O diretor é bem seguro, parece nunca se distanciar de seus personagens. Aqui não existe aqui o "bem" ou o "mal", mas apenas um rastreamento do que seja mais agressivo no círculo juvenil. Entendemos como se configuram situações reais vivenciadas por jovens dentro da escola e como isso gera péssimas consequências.

O tom polêmico também do roteiro assume um lado mais perverso quando, além do bullying, os jovens Joosep e Kaspar sofrem o preconceito da turma — os colegas enxergam na relação afetiva amigável dos dois um envolvimento homossexual, bem característico já que a juventude retratada na película é um reflexo da homofobia atual. Ilmar Raag traz em seu filme traços de uma juventude permeada de revolta, dentro da ebulição sexual, envolta em anseios de libido e desordem. Jovens carentes, vítimas de pais ausentes, sem estrutura familiar. Indivíduos que acabam tendo que lidar com seus problemas sozinhos, vítimas de uma sociedade que não procura lidar com suas preocupações.

E o filme critica muito essa juventude que passa despercebida pelo universo dos professores e pais que acabam não efetuando uma boa comunicação com eles. A trama criada pelo cineasta Ilmar Raag é cruel, mas é um ponto de reflexão ao mundo que vivemos. Uma compreensão sobre os limites da violência juvenil, os pontos negativos e a capacidade que um ser humano tem em tolerar ser humilhado por pessoas de moralidade questionável. Notáveis atuações do elenco geral, mas aqui o talento fica a cargo da química da dupla principal: os atores Pärt Uusberg e Vallo Kirs absorvem todo o clamor sofrido de seus personagens, comovem o público que fica chocado com o que vê. O drama aqui retratado pela obra é excessiva, mas é necessário ser evidenciada, sem nunca pesar a mão. As cenas finais são cicatrizantes, desde já clássicas, por não pesar o tom sentimentalista. Expressivo argumento apresentado neste filme, de fato é uma obra-prima que merece ser acolhida pelo público em geral.

Klass (Est, 2007)
Direção de Ilmar Raag
Roteiro de Ilmar Raag
Com Vallo Kirs, Pärt Uusberg

Amores Imaginários?

Wong Kar-Wai é um dos diretores mais sensíveis, sabe muito bem explorar o máximo da sensibilidade humana em seus personagens. Por ser um diretor criativo e autoral, procura esmiuçar os anseios de seus humanos com uma linguagem poética que difere dos demais cineastas atuais. Em seus filmes, há amostras de indivíduos sempre em busca de amparo diante de uma solidão que parece transtorná-los — afinal, ninguém consegue viver sem um sentimento ou mesmo ebulição carnal. Talvez por isso, o belíssimo Amor À Flor da Pele seja um representante perfeito desse seu estilo humanístico. O diretor mostra que não existe relacionamento que se sustente sem o fervor do tesão e de uma comunhão sentimentalista. É justamente por isso que seus personagens vivem no limiar do desespero. Na Hong Kong de 1962, os carentes Chow (Tony Leung Chiu Wai) e Li-Zhen (Maggie Cheung) se conhecem, se entendem perfeitamente e o desejo retira todo senso da razão. A problemática é comum, tanto um quanto o outro são casados, vivem num matrimônio artificial, sem emoção e não são correspondidos afetivamente pelos cônjugues correspondentes. É então que Kar-Wai explicita que todo ser humano quer ser tocado, quer prazer e quer gozar de um amor sem limitações artificiais.

Ainda que sufoque o espectador com uma narrativa que induza o tesão do casal — o jornalista Chow e a secretária Li-Zhen além de tudo descobrem que seus respectivos parceiros estão tendo um caso também —, Kar-Wai em momento algum utiliza-se de situações eróticas ou mesmo explora o sexo de maneira explosiva. Pelo contrário, com um cuidado absurdo, além do seu apreço pela minúcia ao tratar de cada cena de maneira detalhada, o seu roteiro é auxiliado por um visual apurado que apenas traça mais da emoção do casal que está na frágil indecisão: Deve-se abdicar de um casamento de aparência em função de um desejo absurdo? E quando há sentimento também misturado no tesão? Sem cenas de sexo, coreografias de beijos e amassos, aqui Kar-Wai procura detalhar a emoção tão à flor da pele de seu casal principal — inclusive, abstém-se de mostrar os seus cônjugues, já que o que importa mesmo é o foco na substância claustrofóbica do desejo de Chow e Li-Zhen. Repleto de silêncios, cenas com poucos diálogos, percebemos que a intenção aqui é mostrar a respiração dos seus amantes e não somente o clamor do tesão. O cinema de Kar-Wai é mais subjetivo, delicado, não tão escancarado. Propõe a reflexão.

A paixão incontrolável do casal é explorada na narrativa imagética. Cores avermelhadas explodem, cenários com tons do vermelho e preto que criam o cenário perfeito da luxúria aparente, da trilha sonora com canções de boleros de Nat King Cole. A tendência de Kar-Wai em elevar a temperatura carnal de seus personagens é estilizar os sentimentos de ambos com as representações harmônicas de canções e sons, da fotografia com tons de cores quentes e da música-tema "Tema de Yumeji" que se repete incessantemente. A câmera lenta sempre acompanha os movimentos dos personagens, é a forma de tornar o espectador mais atento às emoções de cada um, aqui temos o contato perfeito dos personagens com o público tamanha identificação humana. Decerto, é um trabalho inspirado de um cineasta exigente consigo mesmo. A mise em scène é trabalhada à perfeição, as cenas resultantes dos ângulos adequados. O espectador é o típico voyeur que vivencia junto com os amantes essa bela história de sentimento e desejo. E Tony Leung Chiu Wai mantém uma forte sintonia ao lado da bela Maggie Cheung, um casal que já entrou para a história da cinematografia ao longo desses anos. Nunca foi tão prazeroso observar um amor improvável com teor de proibição como este filme que merece ser sempre experimentado por todos.


Fa yeung nin wa/ in the mood for love (China, 2000)
Direção de Wong Kar-Wai
Roteiro de Wong Kar-Wai
Com Tony Leung, Maggie Cheung, Lai Chen, Rebecca Pan

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