Em Não Amarás, o mestre diretor polonês Krzysztof Kiéslowski constrói um pequeno quadro sensível, realístico e dotado de forte intimidade humana. Aliando-se de seu estilo em argumento mais nítido na força imagética, ausenta-se de febre em diálogos constantes para representar sua composição. O toque deste diretor se doa na forma que as cores ambientam o psicológico e sensações dos personagens na história, no cruzamento de imagens e sons que funcionam como narrativa funcional. É exercício da mise-en-scène irrepreensível. Há uma composição das imagens dos atores em cena - muito bem estruturadas, naturalizadas, fluem harmonicamente - que atuam como seres reais personificados, sem adornos do exagero. O diretor desnuda um retrato bastante emotivo que pauta contextos sobre sentimentos internos segredados, descobertas sexuais, conceitos morais e sentidos de medo, amor, libido e sonhos. Este filme faz parte da série Decálogo, composta por dez episódios onde o diretor exercita uma visão contemporânea dos mandamentos bíblicos - são histórias intimistas que propõe uma abordagem e recorte sobre temas universais e fundamentais da condição humana - compaixão, desejo, inveja, raiva, amor, sexo. O erotismo fundamenta-se mais na precisão existencial proposta pelo argumento - nota-se o cuidado em demonstrar as nuances dos personagens, universo tão característico do autor: a sensibilidade humanística que é um recurso evidente. A produção tende a ter este vigor detalhista, seria um perfeccionismo do autor?
Observa-se Tomek, o típico adolescente frágil e extremo introspectivo. Ele representa um homem com impulsos sensíveis, no aflorar da sexualidade e dos desejos juvenis. Um adolescente de 19 anos, totalmente retraído e sem amigos que trabalha o dia inteiro e, durante o período noturno, passa as noites trancado no seu quarto com a compania de um telescópio. É aí que o roteiro de Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz se define: com o aparato, a luneta, Tomek observa da janela de seu quarto sua vizinha, Magda (Grazyna Szapolowska) - mulher mais velha em seus encontros sexuais com amante. E qual sentido poderia ser mais pertinente? Ele a espia todos os dias com seu telescópio, passando a vivenciar uma intimidade que não é a sua – o paradoxo de todo voyeur. Eis que Tomek se apaixona perdidamente por ela, assim idealiza nela um ser perfeito. A mulher ideal da concepção de seus sonhos. O que fazer para atenuar seus sentires? Como expressar estes impulsos àquela mulher que nem mesmo conhece? O garoto segreda seus impulsos, permanece em silêncio. Contudo, aos poucos, passa a tentar, de alguma forma, estar próximo dela - envia avisos para que ela compareça ao Correio onde trabalha, só para poder vê-la ou mesmo arruma um emprego de leiteiro para conceber entregas diárias à sua residência. Seria uma maneira de estreitar uma relação? Como um compreender o outro? Há necessidade dele em se mostrar notável a ela - obcecado de amor, arquiteta inúmeros planos para fazer com que o destino dele se cruze com o dela.
Em sua inocência, Tomek se afasta de toda sua realidade ao redor para viver em função de sua idealização - se condiciona a estar imerso em seu quarto, repleto de desejos, pensamentos e ideologias sentimentais. Torna-se um observador da vida alheia; todos os dias observa a mulher de seu telescópio. Kiéslowski mostra o comportamento moralmente confuso, condenado e incerto do rapaz - estaria ele espionando e concebendo truques errôneos contra à mulher? Bem verdade, Tomek é dotado de pureza e sua falta de experiência sexual fica evidente - há também pouca malícia nele em relação a outras pessoas, visto que só sente tesão incomensurável pela vizinha, seu objeto de desejo. Mais que a vontade de sexo, há um foco no amor mais lúdico e platônico exercido por ele. Há martírio maior do que não ser correspondido? Como tentar ser amado também? Decerto, Magda significa a revolução sexual, a mulher fatal, o poder do sexo e da libido pós década de 70 - já Tomek, digno de pena, imerso nas suas tradições de um país católico, resistente até para expressar seus sentimentos. O sexo para ele seria apenas para procriar? Algo que não poderia ser fora da esfera matrimonial? Há o choque dessas representações, das contradições de um para o outro, os opostos se enfrentam no estudo de Kiéslowski. Há um carinho em expor esses personagens, são instigantes: dois seres humanos que, cada qual a seu modo, são afetivamente aleijados, incompletos. Ela tem uma vida sexual ativa, mas é tão solitária quanto o rapaz. O forte teor de obra-prima se instala quando o rapaz, em cena dilacerante, descobre que o amor palpável, verdadeiro, nunca vem dissociado da dor.
No filme, Kiéslowski apresenta a questão: primeiro percorre a intimidade de Tomek, todas suas percepções e visões, para depois demonstrar a contraposição - o foco é direcionado à Magda. E ela é uma mulher desejada, sinônimo de sensualidade e representa as fantasias secretas deliciosas de Tomek. Ela externa o corpo que é desejado, impõe-se como fêmea independente. Por ser madura, expressa-se como uma mulher determinada socialmente, além de ser o símbolo da imponência fetichista sutil do filme - que transfigura esta aura sexual ao garoto. E é na sua sensualidade, aos olhos do teenager que Magda proporciona o estudo sensitivo do filme. Há contradições: ainda que ela se mostre, posteriormente, interessada no garoto - ela provoca desilusões amorosas nele. A cena que Tomek toca suas pernas, dada a sua inexperiência e retração, acaba por ejacular precocemente, é totalmente impactante e tocante. Como ambos sustentarão essa relação que se forma? Será que ela não enxerga o puro sentimento do garoto? E o roteiro reserva catarses, surpresas gradualmente. É uma película marcada pelo tom pessimista, um tanto amargo e exemplifica como o amor pode destruir um ser humano. Tomek sofre por Magda, incondicionalmente. O belíssimo roteiro transita entre esse horror íntimo de um personagem que sofre de amor e suas descobertas sexuais.
E a poeticidade é acentuada, triste e amarga, íntima e seca - eis uma linda história de amor, sim. Um passeio que percorre as emoções mais intrínsecas do ser humano. Amar é sofrer? De fato, um sensato diretor tem a capacidade de sensibilizar com uma narrativa subjetiva - causa reflexão. É pois, por vezes, a vida tende a ser cruel e os corações dos homens endurecidos diante de tantas decepções. Toda a delícia visual é conceituada pela inspirada trilha sonora de Zgibnew Preisner, prefiguração do efeito sentimental. Atuações precisas de Szapolowska, como Magda e do Lubaszenko, como Tomek, fortalecem o filme, são irresistíveis. Tecnicamente, muito bem fotografado também por Witold Adamek. A sequência final é absolutamente deslumbrante. Grande filme, irremediavelmente pungente, retrato ímpar, de um dos mais importantes realizadores europeus do século passado.
Krótki Film o Milosci (Polônia, 1988)
Direção de Krzysztof Kieslowski
Roteiro de Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz
Com Grazyna Szapolowska, Olaf Lubaszenko, Stefania Iwinska, Piotr Machalica, Artur Barcis
21 opinaram | apimente também!:
Não preciso perguntar mais sobre filme a ninguém, basta vir no apimentário e pronto, descrição melhor do que a sua tá difícil de rolar.
Adoro seu Blog.
Tudo de bom!!!
Elaborado, rico sua análise do filme. Deu pra vê-lo passar na telinha, com todas as sensações que pode provocar.
Beijo,
Tânia
sempre uma critica de filme melhor que as daquele que apresenta o oscar. só preciso vir aqui.manda seu banner pra mim por e-mail.
acho que nao se lembra mais de mim.Como vi um comentário antigo no seu blog. Passei para vê se vc estava ainda nesta empreitada. Muitos dos primordios abandonaram...
abs.
Olha só isso!
Man, quando eu precisar de uma resenha vou correr aqui!
Genial..rs
Beijos
Excelente filme e excelente resenha. Muito bem escrita. Abs...
Me deu vontade de rever o filme, que vi há dezenas de anos atrás
Eu sou fã de Kieslowski e a série "Decálogo" é absolutamente imperdível, um trabalho impecável sobre a humanidade e "Não Matarás" por ser inspirado em um dos mandamentos desta série é igualmente indispensável.
Quando eu vi a postagem em seu blog eu nem acreditei ! Estou para escrever um texto sobre o "Decálogo", e por sua complexidade acho que terei um grande trabalho pela frente! Até !!
Que texto maravilhoso!!! Fiquei interessadíssima na obra!!!
Perfeita contextualização, rapaz. Você foca bem nos elementos que são a premissa do blogue: análise psicologica/comportamental e sexualidade...
Cada dia mais fico interessado em ver filmes graças a ti...
Mas kd tempo? rs
Ótima análise. Adoro o Krzyszto, mas não tinha ouvido falar deste. Vou procurar, já que sua crítica me deixou ansioso;
O cinema de Krzysztof Kieslowski é realmente genial.
Ás vezes eu me pergunto onde você encontra esses filmes...
Eu confesso que já devo ter assistido algum filme por aí com o enredo parecido, mas mesmo assim eu gostei desse roteiro ficou muito bom e seu texto melhorou o filme que eu tenho quase certeza. Bjos Blogmurus, sinto falta dos seus comentários.
Conheço pouco da obra do diretor, alias, eu nunca vi nenhum, mas já li muito a respeito de suas obras, esse era até então desconhecido.
Oi, Cristiano. Tudo bem? Vc descreve cada obra com detalhes sensíveis de quem vê de uma ótica apaixonada, analisando a expansão da visão que um filme pode nos dar.
Fiquei com vontade de ver o filme só de ler sua resenha.
Seu talento é nítido, claro e transborda na riqueza de cada palavra.
Gostei muito.
Bjs
Da forma como descreve o filme ja o faz uma texto que satisfaz pela leitura.
Apimentário: seu catálogo de filmes!
Abraços!
Cara, me simpatizei com o garoto, rs
Fiquei louco pra ver este filme, mas pelo jeito só baixando mesmo, rs
Ótima crítica.
Olá,
você passou lá pelos meus cantos e deixou pra traz uma delicadeza.
Teu espaço aqui é muito bom!!!
Curti a curto prazo.
Mas voltarei sempre.
Abraço
Olá Cristiano, tudo bem contigo? quanto tempo.
Blog está demais. Bem movimentando. Isso é bommm.
Gostei também das imagens que mudam no inicio do blog, com os destaques das últimas postagens. Como vc fez? pegou código em algum site? Poderia me dizer?
abraços
boa semana
Adorei tudo o que vi do Kieslowski até hoje (Trilogia das Cores, Não Matarás e A Dupla Vida de Veronique), e, por isso, me peguei aqui pensando o porquê de ainda não ter assistido a esse Não Amarás. Vou consertar esse erro o mais rápido possível...
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