Identidades Sexuais

O trabalho da direção e roteiro do estreante Duncan Tucker concebe um pequeno recorte de realidade, sincero retrato humanístico sobre a sexualidade de um contexto social ultra-conservador - a sociedade norte-americana. Transamérica relata os conflitos em relação ao corpo e a maneira como se relaciona com ele. Analisa a relevância das normas socioculturais na aceitação ou repulsa de uma das formas de identificação queer, o transexual. A narrativa centra-se na história de Bree Ozbourne (Felicity Huffman) - registrado como Stanley Schupack -, uma educada e conservadora transexual que deseja fazer a operação de mudança de sexo, a fim de se sentir realizada por completo. Obviamente, a classificação de homossexual é incorreta para alguém como Bree, pois o problema tem reconhecidamente uma causa genética. Como estar mais satisfeita consigo mesma? A um passo de se submeter ao processo de transformação, o destino determina a catarse: Bree descobre que tem um filho de 17 anos, Toby (Kevin Zegers). Ele é fruto de um antigo relacionamento seu com uma mulher no período de colegial - na época que ainda vivia com corpo, mente e atitudes de um homem comum. Como aceitar essa reviravolta na vida? Como resolver as inesperadas surpresas que o cotidiano exerce? Bree tenta ignorar o filho, porém a psicóloga que deve liberar a cirurgia se recusa a autorizá-la sem que ela se acerte com seu passado. Antes de resolver seus próprios problemas das questões sexuais, deve solucionar suas pendências familiares. É então decide procurar o filho. O trabalho de Tucker viabiliza um tocante e também controverso ato de sensibilidade ao humanizar os personagens em busca de suas próprias esperanças, limitações e fragilidades íntimas.

Bree tem disforia sexual, não se aceita na condição de homem - portanto, preocupa-se e sente desconforto com seu corpo que ainda detém resquícios dos traços masculinos. A sua identidade sexual é plenamente estabelecida ao seu senso de sensações, sente-se como uma mulher repleta de características próprias e toda sua percepção psicológica é consciente: tem a sensação de ter ciclos hormonais femininos, age instintivamente como uma mulher e seu corpo é resultado dessa construção de suas preferências. O corpóreo é uma extensão - vê-se mulher, necessita de todos os arquétipos necessários para essa identificação. Por isso, veste-se como qualquer mulher, maqueia-se e necessita de seios para aproximar da esfera da realidade e modelo padrão feminino. Como qualquer transexual, Bree deixa um sexo pelo outro - abandona todos atributos de um sexo em função das aparências de um outro. Bem verdade, essa transformação física - a operação em si - é apenas uma mudança que deve ser entendida como transformação de "fachada", visto que o ser tem uma nova aparência dado ao seu novo aspecto exterior. Diferente do homossexual e do travesti (este alia-se de um estereótipo temporário de homem ou mulher, mas não muda permanentemente sua condição sexual), o transexual não aceita sua condição de nascimento. Há uma inadequada disfunção entre a anatomia dele com seu "sexo psicológico". A crise na identidade é comum. Daí, a necessidade de mudar de sexo e reivindicação de novo nome, retificando a certidão de nascimento. Bree representa um indivíduo que possui uma identidade de gênero diferente ao designado pelo seu nascimento, ela tem a convicção de pertencer a um sexo e possuir genitais opostos ao sexo que psicologicamente se pertence. Por isso, ansia viver e ser aceita como deseja.

Além de pautar a condição do transexual, o filme coloca questões emocionais: Bree percebe que, antes de mudar sua vida, necessita lidar com a nova situação que se instalou - o que fazer com o filho? A relação inicial que tem com Toby é superficial, visto que ela não diz que de fato é seu pai. Contudo, ao conhecer o garoto, percebe que ele é um ser totalmente transgressor, sem um eixo de moralidade - prostitui-se para conseguir dinheiro; promíscuo, transa com homens e mulheres; é viciado em drogas e age como um típico rebelde. Bree então decide ajudá-lo, leva-o numa viagem de carro com o intuito de devolvê-lo a quem o criou. É então que o roteiro de Tucker atinge seu tom íntimo, pois aproxima esses dois personagens - de extremos tão opostos, mas unidos por laços de sangue - de maneira sensível, tangível. Bree percebe que antes de tentar se enquadrar na sociedade - existe um filho que precisa de cuidados, atenção e de sua própria presença para se manter ajustado. O trunfo no filme é colocar as problemáticas como desajustes familiares, sexualidade, carência e anseios quanto à própria identidade como prioridade. Tanto Bree quanto seu filho Toby são dois seres em busca de algo, tanto que acabam por se amparar. Enquanto cruzam de carro os Estados Unidos - nota-se o tom road-movie intimista - a um destino não tão certo, estes dois vão confrontar suas próprias percepções de mundo e reflexões casuais. Bree é alguém em busca de aceitação e Toby é o garoto desleixado que, por não ter uma educação correta, usa de sua malícia para conseguir sucesso na vida. É um adolescente em maturidade sexual, em conflito consigo próprio: usa do sexo para viabilizar suas satisfações, mas há neste personagem mais sofrimento em sua condição - sofreu violência sexual, por isso cresceu imerso nessas irregularidades que tornaram sua condição libertina. Toby é alguém sem lar, sem raiz - como viabilizar o ajuste? É interessante a dualidade: enquanto Bree, a transexual em busca de aceitação, jamais busca o sexo - seu filho, bissexual hiperativo, condiciona-se neste anseio. Bree sente repulsa pelo seu órgão genital, Toby valoriza o seu.

O foco não é só na condição de sexualidade, mas em argumentar as relações de buscas pelo afeto perdido - amor, sentimento e sensos de sensibilidade. Road-movie existencial? É um filme que articula com precisão problemas reais, sem usar de habituais clichês para favorecer a emoção. Há um tom cru nos diálogos, no aspecto televisivo proporcionado pela montagem simplória. O convencional melodrama é atenuado por toques de humor, ironia e leveza em certas situações do filme - principalmente nas sequências onde a família de Bree (representantes do preconceito, da intolerância quanto a um ser transexual) atua junto com os dois personagens principais. É nítido o cuidado na composição interpretativa de Felicity Huffman (uma mulher que interpreta um homem que quer ser mulher) - desde gestos, posturas, tons de voz. A atriz personifica com maestria o incômodo de uma transexual - no caso dela, a insatisfação de ter um pênis entre as pernas; a voz que tende a afiná-la para não ser reconhecida a verdadeira sexualidade. Sua Bree é um homem de alma feminina. E o filme é imprescindível por atuar como um valor demonstrativo de que existem muitos estigmas reais do preconceito dentro da esfera social. Há indivíduos, independentes de suas escolhas sexuais, repleto de anseios e sonhos incondicionais - e isso independe do que estabelece a sociedade. Eis uma reflexão sobre a modernidade, barreiras sociais - e os dilemas do distúrbio causado pela inadequação entre o aspecto físico e a personalidade.


Transamerica (EUA, 2005)
Direção de Duncan Tucker
Roteiro de Duncan Tucker
Com Felicity Huffman, Kevin Zegers, Fionnula Flanagan, Elisabeth Peña, Graham Greene

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