Os Sonhadores

É curioso como existem pessoas que conseguem se expressar mais nas questões de sua sexualidade, mas problematizam condicionamentos de seus sentimentos. O que define as relações contemporâneas são, diante de tantas/constantes frustrações amorosas, as teias relacionais firmadas em sexo casual e envolvimentos superficiais. Eis o mundo do sexo, na ausência das relações duradouras, onde o medo de sofrer uma dolorosa decepção concebe uma ligação voltada somente ao sexo, sem a correspondência do afeto. E no mundo moderno destas relações sexuais, a poligamia assume sua força bem como as prováveis combinações: relacionamento aberto; promiscuidade; namoros ungidos apenas pelo prazer, sem maiores efeitos de romantismo. O que faz um ser humano ter medo de se entregar ao sentimento? Por que apenas o sexo é fundamentado como primordial numa relação? Canções de Amor insere essas discussões deste panorama juvenil comportamental do século XXI. Christopher Honoré desnuda em seu filme questionamentos ao retratar, com extrema naturalidade e senso sexual, o universo conturbado da afetividade da juventude moderna. Através de Ismael (Louis Garrel), estabelece um recorte sobre os dilemas da sexualidade, das dúvidas existenciais do amor e dificuldades dentro das relações humanas. O rapaz namora a liberal Jeanne (Ludivine Sagnier) com quem nutre uma boa química sexual-amorosa, porém o namoro dos dois agrega um terceiro elemento — Alice (Clotilde Hesme) é uma bissexual que transforma a vida do casal monogâmico. Relação a três, menage à trois, triângulo amoroso? Dividido em três atos, o filme percorre as sensações, sentidos e desejos vivenciados pelo Ismael até quando seu cotidiano sexual transforma-se e o destino preserva uma surpresa: Ismael conhece o homossexual Erwann (Grégoire Leprince-Ringuet), é assediado por ele e suas convicções sobre os sensos de sua masculinidade, e também desejos, são postos em jogo.

Verbalizado como um musical, o filme alia-se das cenas onde os personagens investem em seqüências cantadas; diálogos sonoros que expressam anseios, sentimentalismo e prazeres — as canções são torneadas com sentidos de paixão, visto que os personagens exprimem suas opiniões e comportamentos através das músicas que dão contornos ao roteiro, à agilidade da trama. O efeito-musical é diferente, sem grandes desdobramentos nas cenas cantadas, bem naturalizadas, porém os momentos elevam a atmosfera emocional e até sensual do filme. Honoré escreveu seu roteiro de acordo com as canções existentes do compositor Alex Beaupain, por isso é perceptível a relação narrativa com cada elemento musical. Inicialmente, as músicas são apenas verbalizações do triângulo amoroso — ademais, todos os personagens cantam e expressam suas percepções através de cada melodia. Sentimentos são expostos em rimas; desejos são articulações musicais; canções que misturam/diluem esses conflitos de dor, aspiração e amor que tanto promovem aflição na humanidade.

Um hetero pode se descobrir apaixonado por outro homem? Ismael é questionado. No entanto, no desejo e sentimento, não existem rótulos — são condicionamentos da sociedade. Por ser um olhar cuidadoso, íntimo e realista sobre as relações amorosas — ao assumir a tendência homoafetiva, Honoré denuncia um tom mais provocante, mas não menos poético. Ao colocar a relação homossexual de Ismael em suas descobertas, o roteiro exibe um tom mais romântico, ao invés da característica sexual do primeiro ato. Como um homem que aceita as experiências liberais do sexo a três, das relações casuais e abertas, evita o contato com alguém do mesmo sexo? As cenas mais calorosas do filme são justamente nas situações onde Ismael é cobiçado, seduzido e confronta-se com um desejo até então desconhecido: ter uma relação homossexual. Consecutivas canções contornam esses momentos; onde Honoré investe nos beijos homoeróticos, diálogos que estimulam as sensações libidinais entre dois homens e até uma cena de sexo gay que sublima o efeito dramático do filme. Decerto, ao assumir o tom queer, a trama atreve-se pela qualidade de sedução masculina. E o roteiro não julga os personagens, nem suas posturas/preferências sexuais. Ismael, até então, desconhecia os prazeres de ser subordinado, sexualmente, a outro homem — e é justamente esse senso homoafetivo que encontra fundamento final no filme.

Mais que um trabalho que celebra a sexualidade, a busca pela auto-realização na esfera do sentimento — é um filme que usa da música para refletir a própria condição do homem. Qual dor maior que amar e não ser amado? Como entender as transformações da vida, do desejo e das dores? E o desejo nem sempre é algo definido, previsível. Ama-se alguém hoje; amanhã, um outrem. As inconstâncias e buscas pelas constâncias humanas são problemáticas abordadas por Christophe Honoré que sabe muito bem estudar as feridas das paixonites agudas humanas. Louis Garrel assume seu poder versátil, tanto nas cenas de paixão reservada ao sexo feminino, quanto na descoberta de um tesão direcionado a um homem. Definitivo ator aberto à versatilidade, entregue. A proporção homoafetiva que o filme assume no seu terço final têm os melhores traços interpretativos desse ator que sabe muito bem transpirar a libido, a emoção em cena e um humanismo por conta de certa melancolia expressa do seu personagem. Tão francês, encantador, ainda que livremente piegas e passional, é um filme que poetiza as vicissitudes do amor — sendo canções ou mesmo aflições expoentes humanas. Exemplo de trabalho charmoso que mantém o climático estilo “Nouvelle Vague” em alta. “Ama-me menos, mas ama-me por muito tempo.”

Les Chansons d'amour (FRA, 2007)
Direção de Christophe Honoré
Roteiro de Christophe Honoré
Com Louis Garrel, Ludivine Sagnier, Clotilde Hesme, Grégoire Leprince-Ringuet, Chiara Mastroianni

28 opinaram | apimente também!:

Marcos Nascimento disse...

Rótulos...

Porque é tão fácil dizer que não precisa deles, mas tão dificil se desvencilhar deles. É tão complicado estaelecer relações de sentimentos e separar o que é sexo do que é "fazer amor". Poucas pessoas conseguem separar isso.

Mas e quando você confronta a si mesmo dentro de uma confusão mental? Você quer o sexo, quer o prazer (quem não quer?), mas sem o carinho, o amor, já não faz mais sentido.

Se descobrir apaixonado por alguém do mesmo sexo, ou do sexo oposto, não deveria ser mais importante ou tomar mais espaço do que o fator principal desse texto (quisás deste blog): estar apaixonado. Mas antes de exigir que a sociedade deixe de dar nomes para as coisas precisamos nós mesmos esclarecer quem somos e nos livrar dos próprios rótulos.

Eric disse...

Hey moço, assim vou virar leitor assíduo! Sei que não sou parâmetro para falar do tema, mas gosto quando você diz que o filme é mais do que uma celebração à sexualidade. Ele fala muito da liberdade, das possibilidades que o mundo nos oferece o tempo inteiro, basta ter um olhar atento. O Louis, obviamente, é o centro disso, mas todos os personagens estão abertos ao novo durante a história. E não acho que o sexo casual seja uma abstração do sentimento, a ligação afetiva é sempre mais importante do que chegar as vias de fato. Há beijos silenciosos que falam muito mais do que noites de sexo. É possível nutrir um amor verdadeiro e um tesão fodido (permita-me) por alguém que vc acabou de conhecer? Acho que não, mas intimidade é algo que se ganha de muitas formas diferentes, e a melhor forma é jamais se privar dos seus desejos, ou de consumá-los. Desejos mais do que sexuais, desejos sentimentais também, por que não? Um papinho gostoso cria muitas pontes, p. ex. É meio o que vejo nesse filme. Sentimentos, por isso tristezas, revelações, perdas e, sempre lembrando, possibilidades. Delícia de filme, delícia de texto.

Guto Angélico disse...

O filme é fantastico e adorei sua analise. Canções de amor , questiona tantas coisas mas, pra mim o que mais deixa claro é a questão do amar em excesso, resumida na ultima frase do filme.

Ulisses disse...

Não vi e gostei.

Ricardo Morgan disse...

Mais um filme pra minha lista! hehe A ótima primeira frase do se texto diria que é um 'Lead enigmático' do filme. Estou certo? hehe abraços

renatocinema disse...

Infelizmente não tive acesso a esse filme. Mas, após seu belo texto fica impossível não ficar instigado a assistir o filme.

A diferença entre a busca do sexo e do sentimento é intensa em todo ser humano.

Seus ótimos textos merecem comentários nos filmes: E a Sua Mãe Também e em Irreversível. São dois filmes que me levaram questões sensuais e sexuais que merece sua visão.

Abraços

Hudson disse...

O filme do Honoré chega a ser difícil de comentar, tamanho universo e facilidade com que ele domina sua história. Louis Garrel cantando certamente é uma das coisas mais sedutoras do cinema francês dos últimos anos - só sua presença, a bem da verdade, já é suficiente. Aquele plano inicial dele na sacada de seu apartamento em "Em Paris" já é, para mim, uma das cenas mais emblemáticas do cinema dos 2000.

No caso de "Canções do Amor", gosto como o filme caminha do triângulo amoroso heterossexual (sob o ponto de vista do Garrel, claro) para o relacionamento homossexual. Acho que fica mais permissível entender a jornada dele de um universo a outro - justamente pelas relações casuais, como você inicial o texto.

Parabéns! Excelente trabalho, como sempre.

Davi Valentim disse...

Eu já assisti 3 vezes e em todas foi um prazer. Eu adoro a sincronia das músicas no filme, no meio dos diálogos, como se encaixam perfeitamente e também a abordagem da sexualidade de uma maneira livre e a meu ver até inocente por parte do Ismael.

Gozei, Cris! rs.

Jeferson Ribeiro disse...

Chanson é um filme de poesia em imagens, quando a linguagem poética ganha contornos estético imaginéticos.

Honoré é um mestre nisso, questionar a França tradicional em sua libertè controlada, numa igualdade superficial. Por isso propõe um fraternidade entre os três amantes, e depois, com a entrada do Erwann, fala das relações homoeróticas ou heterossexuais como iguais. Não poderia o ter abordado tema de melhor forma, pondo o Erwann como um questionador do conceito do que é fraterno, mostrando ao Ismael que não há diferenças para o amor, mas sim, no sexo.

Rafael Carvalho disse...

Acho muito legal a forma como o Honoré lida com todas essas relações diferentes dos 4 personagens, soando da forma mais natural possível, nunca como panfleto de qualquer tipo de preferência/opção. É tudo muito livre, e talvez por isso a escolha pelo musical como forma narrativa. Por falar nisso, acho a trilha sonora do filme maravilhosa, não me canso de ouvir. E os atores, todos, com destaque para a Clotilde Hesme, estão ótimos.

Mirella Machado disse...

"No entanto, no desejo e sentimento, não existem rótulos" será mesmo Cris? É tão difícil pra qualquer pessoa se desprender dos rótulos, ainda mais quando se trata de sentimentos reais com que a pessoa não pode mais lidar pra esconder. Se o filme consegue se desprender realmente dos rótulos como vc diz, já me interessou bastante, sua resenha está ótima e bastante reflexiva sobre os relacionamentos. Abraços

Marcelo R. Rezende disse...

Sou apaixonado por tudo que Garrel faz e esse filme é a coisa linda. As partes são bem definidas, as músicas são fofas, a descoberta dum sentimento real, fora das efemeridades a que ele era habituado, emociona demais.


Beijo.

Pedro Henrique Gomes disse...

Boa, Cristiano!

Não gosto muito de comentar quando concordo com as linhas que leio, mas vou acrescentar uma coisa, a propósito do teu texto e daquilo que escrevi no meu.

Paris é também um personagem. É nela que Ismael, Julie e Alice vão buscar a felicidade, vivendo vidas errôneas, topando uns contra os outros a todo o momento. Mas vão cantando. É por isso que o plano final de Canções de Amor é assim, uma janela aberta para o mundo onde os personagens que nela habitam parecem querer externar seus sentimentos. E o filme é justamente sobre isso: sobre o quão difícil pode ser para as pessoas expressar essa vontade de amar, esse desejo pelo amor – de hoje.

A morte e o amor: eis as temáticas honorenianas por excelência.

Abraço!

Kamila disse...

Tem gente que fala de "Os Sonhadores" como um filme sobre a descoberta da sexualidade. Eu discordo. Acho que a obra é até mais profunda que isso. Acredito que a intenção do Bertolucci era, na verdade, mostrar que a gente não deve ter vergonha da nossa sexualidade e de amar, seja de qual forma. Acho esse filme belo e repleto de imagens poéticas! :)

Kamila disse...

Deixa eu corrigir meu comentário... Falei totalmente do filme errado. rsrsrsrsrs

Então, eu não sou a maior fã de "Canções de Amor", por achar que o roteiro é muito inconstante. Acho que a forma como as canções são inseridas deixam o filme com mudanças de ritmo muito bruscas. Mas, uma coisa que eu valorizo bastante nos filmes do Honoré é o fato de ele sempre impor aos seus personagens a vontade de encarar o lado bom e o lado ruim da vida. Eles não fogem disso e isso eu valorizo nos filmes dele.

Augusto disse...

Hunf... é um filme bem bonito de fato, mas acho que logo de início ele o diretor/roterista já compra um dos lados. O filme todo transborda idealismo, e diria até, uma certa militância para o ponto de vista em que converge. Não que isso afete o resultado estético do filme, mas verbaliza com toda força, a perspectiva unifocal: com excessão do próprio Ismael, ninguém mais tem conflito sexual, todos se aceitam e aceitam a sexualidade do outro, o que é singular demais. Mas enfim... Ok... é um musical - poucos dramas e finais felizes - como observado pela personagem Selma, em "Dançando no Escuro"

Fernando Fonseca disse...

Ainda não vi o filme, apesar de vc já tê-lo me indicado. Com o texto, fiquei ainda mais ansioso para assisti-lo.

Adoro essa dualidade amor-sexo. Devido a mudanças sociais, o homem se tornou mais sexual e menos amoroso? Nem tanto, acho que isso está no âmago de cada um, de acordo com seus desejos e anseios.

Unknown disse...

Procurei o DVD deste filme para comprar há alguns dias e me assustei com o preço sugerido numa loja: 114,90! Videolar, acho. Me assustei! É um filme belo, bem ao estilo francês, acho até que merecia mais destaque nas premiações.

Leo Sousa disse...

Oi Cristiano! Tudo bem?

Criei um projeto pra ajudar crianças carentes de até 12 anos (projetoimagine.net.br). Se vc puder me ajudar a divulgar isso e dar uma resposta pra essas atrocidades que tão acontecendo, coloca o banner com o link pro projeto no seu blog por favor:

http://www.projetoimagine.net.br/img/logoimagine2.jpg

Valeu! beijo, leo

Caio disse...

Nossa, não sei como voce acha cerne em que se apoiar nesses filmes que voce comenta, sinceramente. Parece que vc busca o pior só pra contrariar. E, ca entre nós, ta na cara que seu desejo é ver tudo isso publicado, mas é muito fraco.

Sei que não irá publicar, pois não gostas de vozes discordantes.

Beijinho!!!

Felicidade Clandestina disse...

Sou apaixonada pelos "Sonhadores" - desde a trilha sonora até o Louis Garrel, rs.

Canções de Amor nem se fala... sublime :)

Rodrigo Mendes disse...

Louis Garrel é perfeito para filmes em que ele esta entre um casal sensualizando e fumando seu cigarrinho. Rs! Mesmo aqui nesta fita em que o elemento intruso é uma mulher.

Abs.
RODRIGO

M. disse...

Taí um filme que ouvi falar bastante dele, mas está na lista dos que preciso ver. Excelente resenha. Abraços.

Gabriel Neves disse...

Incrível como você é sedutor, Cristiano, é impossível ler um texto seu e não desejar ver ou rever o filme. Seus textos exploram o filme de tal modo que me deixa muito excitado para dar uma conferida. Vou conferir e vou tentar não me enganar mais contigo - pra mim, um texto com o título Os Sonhadores e com a foto do Louis Garrel era sobre o filme do Bertolucci, rs.
Abraços.

Sandra Cristina de Carvalho disse...

Oi, Cris

Sua estética narrativa é perfeita prá quem ainda não viu o filme, como é o meu caso.
Podemos discordar quanto a qualidade do roteiro, direção, atuações e tal. Mas ao ler suas citações, tenho a nítida impressão de estar assistindo ao filme.
Exposição impecável e dinâmica, me faz crer participar da trama como espectadora e, por que não me atrever a admitir, sentir-me como parte da história.
Aguardo por assisti-lo o quanto antes(já vi algumas cenas), e confirmar o que já de antemão pressenti. Ao menos um filme instigante e questionador.

Sandra Cristina

Anônimo disse...

Gosto muito do Louis Garrel e quero muito ver esse filme!
=1

Victor Yamaguchi disse...

Suas análises são tão boas e minusciosas... Buscam aqueles detalhes e interpretações que poucos conseguem ter. E esses filmes que exploram a sexualidade humana são muito interessantes, principalmente se bem trabalhados.
Outro filme desse mesmo ator, Louis Garrel, que assisti foi "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci que também explora essa questão da secualidade humana.

George Luis disse...

Como diz um comentário aqui em cima, você é um sedutor, Cristiano. Suas palavras dão tesão à nossa curiosidade. Ver o filme que comentas é agora uma questão de vida ou morte.

Por sorte, este eu já vi e revi. Acho a cena da canção "Ma memoire sale" uma das mais belas e sensuais cena já feitas. Um jogo de câmera e atuação difícil de fugir da memória.

Seu blog é magnífico. Comento pouco, mas tentarei marcar minha presença por mais vezes. Obrigado por escrever. E não pare nunca!!!

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