Desejos sensíveis

As Amizades Particulares é uma obra-prima de sensibilidade, provocação e polêmica. Baseado no livro autobiográfico do escritor francês Roger Peyrefitte, o filme dirigido por Jean Delannoy em 1964 é ironicamente bastante atual. A obra, hoje, é vista como um retrato destemido sobre as transparências da homossexualidade e até pedofilia — contudo, o que fica evidente é que o filme basicamente quis retratar uma história de sentimento e tesão entre dois garotos dentro de um colégio católico rigoroso: o menino de 12 anos, George (Francis Lacombrade) e o adolescente de 16 anos, Alexandre (Didier Haudepin). Na época da fase de produção, o cineasta Delannoy não teve noção do quanto contestador seria a fita. Segundo ele, o filme não tinha a intenção de ser vulgar ou mesmo promover um condicionamento perverso, existia apenas o interesse em exercitar o apreço por algo mais reflexivo. Deve-se, portanto, tornar exposto essa particular condição, bem de acordo com o que vemos durante a duração da película. Contudo, é um trabalho que incisivamente foi à frente do seu tempo por trazer à tona, dentro de sua ideologia narrativa, certas situações e contextos com certas insinuações sensuais.

Antes de explorar essa aproximação e aparente amizade entre os dois protagonistas, o roteiro, com cuidados e sutilezas, expressa o lado libidinoso que acomete alguns dos garotos dentro da instituição religiosa. Na primeira parte do filme, Jean Delannoy apresenta ao público George que inicialmente se mostra interessado pelo colega de classe Lucien (François Leccia) — a sexualidade deste é rapidamente transposta na narração, pois o jovem mantém um “caso secreto” com outro interno e a relação afetiva vem à tona quando cartas são descobertas, contendo mensagens de cunhos sentimentais e desejos proeminentes.

O roteiro logo mostra que, dentro dessa instituição, existem rigores e metodismos religiosos. Um ambiente tenso, claustrofóbico e opressor por conta dos padres que insistem nas confissões diárias — modo veemente de fazer com que as crianças e os adolescentes expressem seus anseios e verdades ocultas para eles. Logo no primeiro ato, fica exposta essas vertentes, quando a problemática verdadeira do filme atinge seu fundamento: George sente-se atraído fortemente por Alexandre, o menino de forte personalidade, carisma e de extrema sensibilidade que encanta a todos; inclusive os padres que parecem permanecer sob hipnose quando o garoto-maroto imerge no ambiente.

Instigante a forma como o filme avança e explora a tal amizade particular de ambos. Sob diálogos naturais, íntimos e de grande beleza poética, os dois esboçam o início de um sentimento ora desnudo de malícia, ora altamente libidinal — obviamente, existe uma preocupação com a sutileza, mas a tensão sexual inevitavelmente é persistente, ainda que o teor de aparência lúdica e pueril do sentimento dos dois sejam mais friccionados. Interessante a coragem de Jean Delannoy em trazer na década de 1960 um tema tão incendiário. Seu olhar é perceptível quando traça sequências de leve aproximação carnal dos dois — como na provocativa seqüência do celeiro — ou mesmo nas trocas de olhares de seus personagens juvenis, na maneira como George não freia seus impulsos e mantém o desejo alerta para o menino Alexandre. Seguramente, o público percebe que há um senso de "amor pueril" ou mesmo uma relação envolta em sentimentos de extrema sensibilidade, porém o caráter sexual é envolvente e não pode ser desprezado.

Ademais, a narrativa também percorre um pouco dos hábitos e condicionamentos efetuados dentro da instituição. Compreende-se as ditaduras educacionais, as posturas adotadas pelos padres, a maneira como se utilizava da punição como forma de provocar a culpa nos jovens e, dessa maneira, intitular os atos de arrependimento ou mesmo em algo pior, como alunos expulsos por serem "considerados transgressores ou pervertidos". É a típica lei religiosa daquele período e que, no próprio filme, acaba por fragilizar a relação de George e Alexandre. Fora isso, há ainda um tom dúbio exercido pelo roteiro na maneira como coloca um padre com interesses misteriosos quanto aos garotos — seria apenas o intuito de observar quaisquer atos transgressivos ou o interesse sexual?

Como objeto reflexivo cinematográfico, este é ainda um filme necessário e revelador. O tom narrativo ou mesmo o traquejo interpretativo do corpo do elenco é bem executado — nota-se o esforço da direção minuciosa de Jean Delannoy na maneira como a câmera se posiciona frente às faces, nas atuações dos atores, principalmente o então garoto Didier Haudepin que tem um exercício de interpretação mais vibrante e admirável. É um trabalho dramático de grande proporção emotiva, fatalmente o público sente-se aflito ou mesmo sensibilizado com o que vê — e ainda que a fotografia tenha tons monocromáticos, deparamos com uma realidade ali com cores muito mais quentes, bem de acordo com o mundo de tabus e estigmas que estamos inseridos.

Les Amitiés Particulières (FRA, 1964)
Direção de Jean Delannoy
Roteiro de Jean Aurenche, Pierre Bost
Com Francis Lacombrade, Didier Haudepin, François Leccia

17 opinaram | apimente também!:

Sandro disse...

excelente texto..e o filme deve ser muito interessante. pretendo assistir.

Vinícius Alexandre Fortes de Barros disse...

De onde conseguiu assistir o filme? Pretendo assistir também.

Vinícius Alexandre Fortes de Barros disse...

De onde conseguiu assistir o filme? Pretendo assisti-lo também.

Mac Felix disse...

Concordo plenamente. Sou admirador dessa obra maravilhosa vinda da França para clarear um pouco mais nossos olhos e mentes.

Mac Felix disse...

Concordo plenamente. Sou um admirador dessa obra maravilhosa que veio da França para iluminar nossos olhos e mente. Ótimo texto.

Marcelo A. disse...

Uma obra-prima. Lamentável, como comentei na comunidade, que não tenha recebido uma edição à altura em terras brasucas. Para mim, é um daqueles filmes fundamentais, que todo cinéfilo tem que assistir.

Ccine disse...

Maravilhoso texto.
Não conheço esse filme, mas depois do que vc escreveu, fiquei super interessado. Mas um para minha lista de filmes necessários.

Abraço e mais uma vez parabéns pelo ótimo olhar sobre a obra.

renatocinema disse...

Sensibilidade, provocação e polêmica, tudo que aprecio num filme. Esse eu não conhecia e parece ser uma ótima pedida.

Acredito que alguns dos filmes mais provocadores são os que pegam o próprio diretor de surpresa, como foi citado no comentário do diretor de As Amizades Particulares.

Acredito que os "fantasmas" dos colégios religiosos serão sempre atuais e provocantes.

Unknown disse...

Parece ser um filme bem interessante. fiquei curioso para assisti-lo depois de ler sua excelente resenha.

Obrigado pelo comentários lá no blog, adicionei o seu blog lá no meu tb! Volte sempre!

http://monteolimpoblog.blogspot.com.br/

Kamila disse...

Cristiano, parabéns por mais um excelente texto. Admiro muito a forma como você escreve e o jeito como você transmite o que capta dos filmes que assiste. Parabéns mesmo!! O Apimentário é um excelente espaço para discussão.

Hugo disse...

Não conhecia o filme e o tema com certeza criaria um polêmica enorme nos dias atuais, talvez até maior que na época do lançamento.

Abraço

D. T. S. disse...

Postei um filme japonês na semana passada que acho que poderia dar uma bela resenha no seu blog.

Se chama "A mulher de areia", "Suna no onna" no original.

Segue o link caso não tenha visto: http://resenhafilme.blogspot.com.br/2012/06/mulher-de-areia-suna-no-onna.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed:+ResenhaDeFilmes+(Resenha+de+Filmes)

Abraços.

D. T. S. disse...

Postei um filme japonês na semana passada que acho que poderia dar uma bela resenha no seu blog.

Se chama "A mulher de areia", "Suna no onna" no original.

Segue o link caso não tenha visto: http://resenhafilme.blogspot.com.br/2012/06/mulher-de-areia-suna-no-onna.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed:+ResenhaDeFilmes+(Resenha+de+Filmes)

Abraços.

Kézia Lôbo disse...

Oie... muito obrigada pela visita.. fico feliz que tenha curtido a resenha =D
Muito interessante teu blog, tanto que estou seguindo tbm... =D
Ahhh e dica de filme interessante, e polêmico, deve ser difícil de achar, mas não impossível, assim que tiver a oportunidade também quero ver.
E parabéns, vc escreve muitooo bem!! =D

J. BRUNO disse...

Olá Cristiano, o que acho interessante em filmes que exploram tal temática é que eles servem como forma de quebrar o silêncio macabro que se cria em torno dos temas tabus, temas que precisam ser debatidos sem visões embotadas de preconceito. Pelo que entendi, ao ler sua resenha, o filme aborda uma situação extrema, que se passa na clausura de uma instituição religiosa, no entanto esta mesma situação, falo da imposição de culpa, acontece frequentemente em nosso cotidiano e as vítimas delas não são tão somente os homossexuais, basta ser diferente para ser uma vítima...

Júlio Pereira disse...

Olha só, depois de um texto, falando realmente bem de um filme! haha

Sua resenha me deixou bem interessado em relação ao filme, que não conhecia, sobretudo por sua temática e época que foi lançado!

railer disse...

cristiano, como sempre uma ótima crítica. deu vontade de ver.

abraços!

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