Incesto poético?



Como falar de sexo sem causar tanto impacto negativo? Há abordagens que, por conta do intuito provocativo, conseguem exercer indisposição em grande parcela do público. Não é o caso deste filme que tem texto adaptado da obra polêmica de Ian McEwan — autor conhecido pelo respeito de seu livro mais aclamado, "Desejo e Reparação", dirigido por Joe Wright em 2007. O Jardim do Cimento é uma produção independente com direção de Andrew Birkin (roteirista de filmes como "Joana D'Arc de Luc Besson" e "Perfume - A História de um Assassino") que também adapta o romance homônimo. Aqui temos o traço da sexualidade obscura, o que muitos condenam como perversão libidinal, já que o filme explora a relação incestuosa de dois irmãos, Jack e Julie — interpretados por Andrew Robertson e Charlotte Gainsbourg que, após o repentino falecimento do patriarca da família de quatro filhos, ainda tem que se confrontar com uma dor maior: a mãe, também doente, falece em seguida, deixando-os desamparados com mais dois irmãos para cuidar. Temos aí uma história marcada por melancolia, dor, superação e motivações de uma sexualidade que permeia toda a narrativa.

Com certa urgência, Andrew Birkin explora rapidamente os personagens dessa família, bem como constrói breves cenas logo no prólogo do filme para ambientar a relação dos pais com os filhos. A construção do roteiro procura envolver o público, primeiramente apresentando a relação rígida do pai (Hanns Zischler) com o filho mais velho Jack — sem muita afetividade, certa indisposição e diálogos que evidenciam o contato problemático. Mostra o papel da mãe (Sinéad Cusack) que tenta estabelecer um bom diálogo entre os filhos. O roteiro não diz os nomes de cada um, apenas são chamados de “pai” e “mãe”, obviamente torna nítido que o que importa nessa trama são os filhos. Ademais, o filme ainda escancara o comportamento sexual de Jack, um garoto que se masturba diariamente escondido no banheiro e se abstém no auxílio doméstico. 

Interessante o posicionamento um tanto libertino e malicioso de Charlotte Gainsbourg — a atriz foi convidada por Andrew Birkin, seu tio, irmão de sua mãe Jane —, conferimos o direcionamento de "tom erótico" que sua personagem exala desde as cenas iniciais em que se mostra como uma garota de forte personalidade, decidida e madura. Gainsbourg confere uma atuação envolvente, forte e precisa como uma adolescente que não mascara as intenções diante do irmão. Temos uma cena significativa, como quando Jack entra no quarto de Julie — Gainsbourg se posiciona de maneira malandra para a câmera, exibindo suas pernas e mostrando uma sensualidade quase inocente, casual, mas o público percebe ali uma forte malícia no ar. Jack e Julie começam uma brincadeira, cócegas, cada um explorando o corpo do outro, é quando abruptamente a situação se converte em algo sexual. Compreende-se que dali para frente o filme vai mostrar a aproximação desses irmãos nesse sentido.

Com muita sensibilidade, cuidado, como um olhar intruso diante das intimidades dessa família, Andrew Birkin apresenta esses irmãos tendo que superar a dor da perda dos pais. A atração de Jack e Julie torna-se constante, inúmeras cenas exploram esse contexto de indução sexual e provável envolvimento dos dois. À eminência de uma relação de incesto, o público imerge no cotidiano dos dois, nos diálogos bem naturais — Gainsbourg e Robertson captam bem as tonalidades das personalidades de seus personagens tão díspares; ironicamente se relacionam numa espécie de amor e ódio, uma mistura de atração e repulsa. O olhar de “narrador” é ditado por Jack em off, desnudando um pouco desse personagem e recriando o universo íntimo de sua família. Há ainda espaço para debater o caso de sexualidade confusa na infância, através do irmão caçula que apresenta anseios femininos e gosta de se vestir como uma garota, simulando ser uma “dona de casa”. Tudo colocado com um certo tom poético e sensível sempre, para não causar perturbação.

O Jardim de Cimento não tem apela para o moralismo, muito menos condena seus personagens, apenas há a exposição natural da sexualidade entre quatro paredes e de uma trama familiar que pode acontecer com qualquer um. O filme nos mostra um retrato de juventude da década de 70, pós uma revolução sexual da década anterior, valendo-se a predisposição à liberdade dos anseios, emoldurando o retrato juvenil que não se condiciona ao puritanismo familiar. Sob uma melancólica sonoridade proposta pela trilha de Ed Shearmur, é inevitável que o pequeno trabalho cinematográfico não seja mais que fundamental. Ainda mais com uma trama tão ousada e que, se mal aproveitada, poderia render maiores desconfortos e indisposições.


The Cement Garden (Irlanda, 1993)
Direção de Andrew Birkin
Roteiro de Andrew Birkin, baseado no livro de Ian McEwan 
Com Charlotte Gainsbourg, Andrew Robertson, Sinéad Cusack

6 opinaram | apimente também!:

J. BRUNO disse...

Eu nunca tinha ouvido falar dele Cris, fiquei curioso, pelo tema e por ser adaptado de uma obra do Ian McEwan, li "Reparação" e gostei muito. Outro fator que certamente me deixa ainda mais curioso é a presença da Charlotte Gainsbourg no elenco.

http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2012/09/in-treatment.html

M. disse...

Nunca vi este filme. Fica a dica! Excelente texto.

Elton Telles disse...

Não vi o filme, mas tinha me chamado a atenção quando me mandou os detalhes e agora seu texto me deixou ainda mais curioso.

O título da crítica me fez lembrar um grande filme do Louis Malle chamaado "O Sopro No Coração", que também aborda o incesto sob uma perspectiva até romântica, eu diria. É muito interessante. E o que dizer de "La Luna", do Bertolucci, com a maravilhosa Jill Clayburgh?

Incesto já rendeu grandes e polêmicos filmes. Este é um que preciso conferir.


Grande abraço, Cris!

Kamila disse...

Adoro Ian McEwan, um dos meus escritores favoritos. Adorei seu texto e o livro, tanto como o filme, parecem ser bem instigantes. Vou ver se encontro a obra literária primeiro antes de cair em cima do filme. :)

Fábio Henrique Carmo disse...

Não conhecia esse filme. Mas como a Charlotte Gainsbourg adora um filme "polêmico", hein? Deve estar na genética da família. Anda sumido, hein, Cristiano? Abraço!

Anônimo disse...

Só você mesmo pra encontrar esses filmes mega obscuros (ou pouco conhecidos mesmo).

Muito bom ver Charlotte Gainsbourg em início de carreira.

Abraço!

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