Prostituta da maternidade?


Olhar inspirado no senso neorrealista, essa contundente obra de Pier Paola Pasolini provocou polêmica no lançamento, sendo até censurado em diversos países — como na Itália que classificou o filme como "ato de obscenidade". Hoje, essa polêmica é sem sentido. Na verdade, Mamma Roma, segundo filme do cineasta, é um trabalho que explora bem questões sociais e mexe com noções da sexualidade, mais nada que beire ao vulgar ou ao exagerado. Aqui temos Ana Magnani como a prostituta em redenção, uma mulher de personalidade forte e que exala ainda um frescor sensual ainda que já não seja mais jovem. Disposta a transformar sua vida em algo novo, abandona a trajetória da profissão marcada por certo sofrimento e parte no idealismo da moralidade: integrar-se socialmente como uma mulher digna. Eis a articulação de uma mulher que decide viver fora das ruas e construir um sentido de paz, resgatando o seu filho Ettore (Ettore Garofalo) sob seus cuidados, na ânsia pela formação de um lar harmônico dentro da comunidade romena.

Pasolini assume sua direção perspicaz em cima dessa personagem tão forte. Temos a exploração detalhada de uma Itália com cafetões, prostitutas, mulheres sem maridos e permissivas ao sexo casual, marginais e toda uma gama de pessoas pobres e que conferem uma noção dessa cidade tão suja, degradada, espécie de "periferia". Diante de uma visão que, ainda que com certos diálogos eufóricos e, no primeiro ato, demonstre a personalidade efusiva de Mamma Roma em meio a berros, gritos e risadas extremas — o filme tem um caráter de crítica social bem pessimista, por vezes melancólico que gradativamente se acentua na segunda metade de projeção.

Anna Magnani estabelece a figura que mais foi acentuada em sua carreira: A mulher de dons maternos, sentimental, mas dotada de uma sensualidade avassaladora. Aí reside o aspecto emocional mais necessário à preservação do conceito dessa obra. Pois, ela é a típica mulher transgressiva que busca criar o respeito de uma sociedade que, anteriormente, a recebia nos braços do sexo — por isso o esforço da narrativa em destacar a relação um tanto problemática, mas intensa, de mãe com filho. Mamma concentra suas forças como feirante, na busca por sustento financeiro, priorizando o cuidado com seu filho vadio e rebelde que, a todo o momento, sucumbe à tentação de atirar-se no seio da marginalidade e do sexo fácil.

Com seu próprio roteiro, Pasolini expõe, diante de um roteiro bem honesto e franco, o caráter desta mulher tendo que livrar-se da condição cicatrizante de prostituta, feita por Magnani de maneira lúcida e dramática. Inúmeras cenas caracterizam a condição de realismo, uma tônica de quase documentário, onde Mamma interage nesse terreno de “busca por dignação”, mas que inevitavelmente não consegue fugir de sua teia: será uma eterna prostituta? Como livrar o filho dos caminhos da criminalidade? Ademais, o olhar sobre a juventude imersa em libertinagem e liberdade, a contextualização da marginalização, é bem exposta na visão do garoto. Vemos uma Roma desorganizada, com terrenos baldios, compostas de pessoas consideradas à margem — Ettore envolve-se com essas personificações sociais. Anda com adolescentes transviados, “gangue juvenil”, e ainda se envolve com uma garota libidinal e mãe solteira (Silvana Corsini, excelente), acostumada a transar com qualquer garoto do bairro.

A teatralidade da “vida real” é um bom recurso, já que Pasolini utiliza atores amadores para compor sua seiva humanística. Fora Anna Magnani, o elenco é feito de pessoas sem experiência, daí a intenção em tornar o olhar mais autêntico possível. Segundo o diretor, esses atores, muitas vezes boêmios dos locais que ele freqüentava, eram representações da sexualidade que ele experimentava cotidianamente. A fotografia belíssima em preto e branco reforça o tom cru e sensível que cabe como reforço imagético sobre essa construção de “gente como a gente”, onde o público acaba por se envolver na batalha de mundo desta mãe que luta pela consciência do filho numa Roma em ruínas. Indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, Mamma Roma é um filme ainda de senso atemporal e que, ainda que não deva mais ser considerado como um trabalho obsceno para ser banido, preserva uma reflexão diante da provocação argumentativa que induz.

Mamma Roma (ITA, 1962)
Direção de Píer Paolo Pasolini
Roteiro de Píer Paolo Pasolini
Com Anna Magnani, Ettore Garofolo, Franco Citti, Silvana Corsini

8 opinaram | apimente também!:

Bruno Etílico disse...

odeio quando vc faz uma resenha tão ótima que dá vontade de baixar e eu fico horas procurando link ou torrent que funcione rsss

apenas pare de aguçar minha curiosidade!


:*

Emmanuela disse...

Adorei esse filme, bastante estimulante!

Kamila disse...

Acho que eu nunca assisti a um filme do Pier Paolo Pasolini, mas adorei esse seu texto, como sempre. :)

Fábio Henrique Carmo disse...

Taí um filme que preciso ver, ainda mais com essa fantástica atriz. De Pasolini só vi "O Evangelho Segundo São Mateus". Abraço, Cristiano!

Ailton Monteiro disse...

Nunca vi MAMMA ROMA! :(

Oi, Cristiano. Só passando pra dizer que finalmente o meu blog mudou de visual. Depois dá uma passada lá.

renatocinema disse...

Conheço pouco de Pier Paola Pasolini. Estou com esse filme em casa, comprado em coleção e ainda não me senti inspirado.

Mas, é engraçado ler seu texto no momento em que estou me deliciando ao rever Tieta, em dvd, onde existe relação com passado "nefasto", diria.

Quando você falou de cicatrizes, internas, me convenceu de vez.

Acho que esse final de semana...assisto, na marra.

Unknown disse...

Assisti a alguns filmes de Pasolini, sempre polêmico, gosto muito de Salô, Acatone e Decameron. No entanto, ainda não assisti esse, mas me parece ser bem interessante, colocarei na minha lista "must see". Gostei do texto, com de praxe, muito bem elaborado. Um abraço. ;)

José Francisco disse...

Seus textos continuam sempre inspirados e convencedores. Mesmo que eu não tenha assistido a algum dos filmes resenhados, depois dos seus textos, vou correndo para assistí-los. Obrigado.

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