Entre quatro paredes?


Como conter os ímpetos da carne? O ser humano tendo que se mascarar. A sexualidade como repressão. Desejos ocultos, emoldurados sob rígidos falsos moralismos. A angústia de ser plenamente infeliz por conta disto. Não é à toa que este trabalho dirigido por John Huston foi provocativo e muito a frente para sua época, tanto que não obteve sucesso e tornou-se cultuado mais de 40 anos após seu lançamento. Talvez hoje a sociedade esteja mais preparada ou mesmo interessada para absorver um filme que dialoga fortemente sobre a hipocrisia presente no âmbito sulista dos EUA da década de 1950. Baseado no livro de Carson McCullers, O Pecado de Todos Nós, é um cinema que instalou novas vertentes narrativas — em termos de proporções insinuativas e maliciosas — dentro de Hollywood. Por isso, pode-se afirmar que é um trabalho bastante provocador e contundente.

A ação ocorre numa base militar onde moram algumas pessoas, logo após a 2ª Guerra Mundial. Neste terreno tão adornado de mentiras, observamos a trajetória do Major Weldon Penderton (Marlon Brando) que vive um casamento já em frangalhos e tedioso com sua esposa fogosa Leonora (Elizabeth Taylor) — logo de início, John Huston escancara o mórbido e o perigoso local onde as aparências apenas se acentuam. Com uma relação tão formal, fecundam-se segredos entre si. Leonora, sexualmente liberalista, transa com seu vizinho Morris (Brian Keith) em canteiros de amoras; este, por sua vez, negligencia sua esposa Alison (Julie Harris) relegando-a a depressão e sendo vista como uma mulher "perturbada" por todos. Já Weldon, por trás da frieza, austeridade e conservadorismo com que lida com a personalidade altiva e sensual da mulher, é um homossexual enrustido. 

A construção do filme é ousada, ainda que com uma elegância e pequenas sutilezas, mas que se afastam de outros clássicos como Gata em Teto de Zinco Quente, Vidas Sem Rumo ou mesmo Uma Rua Chamada Pecado, obras de Tennessee Williams, obras que mascaravam os contextos mais carnais e referentes à homossexualidade quando adaptados ao cinema. Aqui é o oposto, desde o início John Huston afirma o caráter e as motivações de cada personagem, sem receio, mas com um cuidado para que o público torne-se apenas um voyeur do que é explorado. A intenção não é só descortinar o mundo artificial desses personagens, mas o argumento polêmico se sustenta majoritariamente no desenvolvimento psicológico do Major — o homem passa a sufocar-se quando se sente atraído pelo recruta Williams (Robert Foster), jovem introspectivo que tem o hábito de cavalgar pela região sem roupas, despertando atenção (ou seria desejos?) de todos à sua volta.

Estabelecendo maiores provocações, o roteiro lida com situações maliciosas. O tal recruta nutre um amor platônico por Leonora — diariamente esconde-se em seu quarto, espreitando-a, num típico exercício de voyeurismo. O senso de desejo obsessivo ocorre também com Weldon que imerge numa crise de identidade por conta do tesão que sente pelo soldado. São emocionantes as cenas que Marlon Brando caminha em silêncio na chuva, pensativo, tentando conter os desejos inconfessáveis pelo soldado recruta. Em outro momento, ele chora demonstrando as fragilidades do próprio ser, boa representação do papel do homossexual que sofre com sua condição. Paralelo a isso, há ainda exibição da sensualidade feminina: Elizabeth Taylor exibe o corpo ao caminhar nua na frente de Brando, numa fotografia soturna conceitualmente perfeita em sombras.

Incisivamente, John Huston submete o público em pequenas sequências de delírios homoeróticos e sexualidade — como na cavalgada do recruta nu pelas florestas, sendo observado pelo atento olhar de Wendon, um momento bastante sedutor e que acentua a força da luxúria que a película exala; nas cenas de Leonora admirada pelo recruta enquanto dorme; ou mesmo na subjetiva, mas não menos contundente, passagem em que Wendon pega um papel utilizado pelo recruta, se apossa e o enrola, transformando-o numa espécie de formato fálico. O efeito sensual é bem evidente, mas jamais o filme recorre à vulgaridade ou ao óbvio. Temos um cuidado com o que se propõe.

Robert Forster é o símbolo do efeito libidinal que o filme transpira: tanto Brando, quanto Taylor, sentem tesão por ele. "Todo aprendizado obtido às custas da normalidade é errado e não deveria trazer felicidade.", é dito em certo momento do filme. Há certa reflexão diante da infelicidade ou mesmo insatisfação que demonstram os personagens. Como viver numa vida indesejada? Como atenuar o que a carne tanto quer? O título original Reflections in a Golden Eye é simbolicamente externado através dos olhos “dourados” do recruta voyeur de Foster e também de um franco diálogo dito pelo criado de Julie Harris que pinta um pássaro e comenta que nos olhos dourados dele escondem uma morbidez — metáfora sobre os seres humanos que vivem imersos em suas próprias mentiras podres e desejos reprimidos; em função disso temos a plasticidade técnica e exuberante fotografia em tons de sépia conferindo o dom imagético de acordo com uma narrativa que atingiu maturidade dentro dos padrões de censura de Hollywood. Um clássico necessário.


Reflections in a Golden Eye (EUA, 1967)
Direção de John Huston
Roteiro de Carson McCullers, Chapman Mortimer, Gladys Hill
Com Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Robert Forster, Julie Harris

5 opinaram | apimente também!:

Unknown disse...

Ótimo texto, fiquei curioso com esse Huston inédito para mim. Mais curioso ainda é constatar uma realização de um diretor que prezava por temáticas "machistas", lidar com algo que pode ser considerado ousado. Preciso ver esse.

Abração.

Danilo Sergio Pallar Lemos disse...

Seus textos são ótimos, a critica traz o crescimento e provoca mudanças.
wwwsabereducar.blogspot.com

renatocinema disse...

A sexualidade como repressão é um eterno conceito do ser humano.

Adoro tramas de paixões platônicas, acho apaixonante.

Conheço pouco o trabalho do diretor, um pecado. Esse é mais um que entra na linha de obrigatórios.

Fábio Henrique Carmo disse...

Tenho uma baita vontade de ver esse filme de Huston. Mas, não, não tenho na minha coleção!

Cristiano, tem um selo pra vc lá no Cinema Com Pimenta! Abraço!

Kamila disse...

Conheço pouco da filmografia de John Huston, não assisti a esse filme, mas como sempre, adorei a densidade de seu texto. Parabéns por manter sempre o alto nível!

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