Eis que o cinema nacional demonstra um belo exemplo de exercício cinematográfico. O filme Sonhos e Desejos, dirigido por Marcelo Santiago, baseado na obra "Balé da utopia", de Álvaro Caldas, consegue ser deliciosamente prazeroso. A produção foca na trajetória de três personagens: Três militantes confinados dentro de um apartamento. Há uma destemida jovem estudante, Cristiana (Mel Lisboa); um professor de literatura, Saulo (Felipe Camargo) e um guerrilheiro (Sérgio Marone) ferido durante uma ação que esconde a face, cujo nome é um mistério. Em plena euforia do auge da repressão militar, nos anos 70, Cristiana abandona sua cidade natal para esconder-se num "aparelho" em Belo Horizonte, junto com seu namorado Saulo. E é lá que conhece o homem ferido, um bailarino, com rosto coberto por um capuz. Ao passo que eles confrontam as próprias opções políticas, diante do medo de serem pegos, contestam também o aprendizado da convivência. E eis que o confronto da política é relacionado à afetividade - Cristiana passa a ter uma proximidade intensa com o misterioso guerrilheiro que, num súbito de desejo inesperado, passa a manter um gradativo elo de tesão com ela. Já que Saulo parte para a prática política - no apartamento, solitários e reclusos, Cristiana envolve-se sentimentalmente num elo de amizade pautada em grandes diálogos existenciais, papos desconexos e a afinidade flui. E o desejo ocorre. Como lidar com o sentimento inesperado? Cristiana passa a ter mais química sentimental, sexual e acalento ao lado do guerrilheiro - visto que Saulo, constantemente abalado pelos embates políticos, mantém-se, quase sempre, ausente do seu convívio.
E é na sua ausência que o desejo clama pelo companheiro encapuzado, o tesão entorpece os sentidos e o apetite sexual se intensifica. Entre papos, olhares e diálogos diários é que ambos envolvem-se mais. O roteiro navega entre essas duas vertentes - a discussão política externa e o triângulo amoroso dentro da atmosfera do apartamento que serve de refúgio e também proteção à ditadura militar. A intimidade deles é focada em primeiro plano, o conflito reside mais nas motivações sentimentais dos personagens que o detalhamento do painel político que se configura em segundo plano. Cristiana representa uma jovem que se envolve no movimento de resistência pela luta armada, levada mais pela paixão inicial do seu namoro com o Saulo, do que por forte convicção ideológica. Bem verdade, por acabar reclusa no aparelho, imersa em sonhos secretos e desejos pelo guerrilheiro, ela perde a própria identidade militar - já que não participa, integralmente, da luta armada representada pelo personagem de Saulo. Ele é o típico indivíduo politizado, conscientemente engajado, sendo parte de grupos armados contra o regime militar. No universo alienado do apartamento, Cristiana passa a ter envolvimento psicológico e sexual com o bailarino encapuzado.
O filme pauta essa questão da traição, lealdade e também o dilema do ciúme. A moralidade, a confusão dos sentimentos e as motivações dos desejos são questionados sempre pela personagem que narra a história: ela vê que não há mais solução para seu relacionamento com Saulo, este tenta não se abalar pelo ciúme que desorganiza seu foco na política - ele considera um "sentimento pequeno-burguês" está enfraquecido por questões do amor. Estaria ela apenas vivendo uma ilusão? O novo amor seria a libertação de uma vida já firmada na perda de sua identidade? O sexo é prazer que liberta a alma confusa? O corpo pede, clama e sente tesão constantemente. A opção visual do diretor, com nítido cuidado plástico, auxiliado com beleza pelo diretor de fotografia Dudu Miranda, contextualiza a narrativa. A fotografia muda de cor e textura conforme o momento. No esconderijo, as cores são extremamente fortes/quentes; do lado de fora, a fotografia recebe tons azulados; e as cenas do passado, em flashback (momentos que mostram o início do namoro de Saulo e Cristiana), tem a beleza do preto e branco. O conceito visual aprimora a qualidade do filme, precioso elemento. A densidade colorida dentro do apartamento revela o teor sexual que reina ali, já o tom monocromático externo representa o abalo político de crueldade. Tem uma montagem interessante em que mistura créditos, imagens de arquivo e cenas dos personagens da história concebendo agilidade à narrativa. A trilha sonora tem canções de Milton Nascimento e Wagner Tiso.
E o roteiro mantém um certo erotismo em colocar Cristiana como a representação do desequilíbrio masculino - tanto Saulo quanto o guerrilheiro sentem um desejo desmedido por ela. E ela transa com ambos, em cenas de sexo ardente. Mel Lisboa é o misto da sensualidade e representa a feminilidade passional apaixonada. Sérgio Marone exala charme, masculinidade sexual em olhar e expressão corporal. E Felipe Camargo é sereno e mantém uma concentração interpretativa. O choque entre a vida afetiva e a participação política, sentimentalidade versus comunismo, são artifícios do roteiro. O filme mistura a política e sexo - os personagens ora pregam a revolução, ora fazem maratonas sexuais. Vivem entre o desejo e a utopia - a sexualidade e o desejo são trabalhados como a expressão da individualidade e a utopia como o sonho coletivo de uma geração. A coexistência desses dois elementos em um mesmo indivíduo e a interferência que um exerce sobre o outro são problematizados. O conceito sexualidade versus comprometimento social é anunciado desde a abertura de créditos, sendo facilmente compreendido. À beira do colapso emocional, os personagens vivenciam a loucura proporcionada pela solidão, com diálogos sempre auto-reflexivos. E no cárcere privado é onde o amor se torna aliado do sexo que gera uma superação coletiva. Grande filme nacional de apuro técnico e emocional.
E é na sua ausência que o desejo clama pelo companheiro encapuzado, o tesão entorpece os sentidos e o apetite sexual se intensifica. Entre papos, olhares e diálogos diários é que ambos envolvem-se mais. O roteiro navega entre essas duas vertentes - a discussão política externa e o triângulo amoroso dentro da atmosfera do apartamento que serve de refúgio e também proteção à ditadura militar. A intimidade deles é focada em primeiro plano, o conflito reside mais nas motivações sentimentais dos personagens que o detalhamento do painel político que se configura em segundo plano. Cristiana representa uma jovem que se envolve no movimento de resistência pela luta armada, levada mais pela paixão inicial do seu namoro com o Saulo, do que por forte convicção ideológica. Bem verdade, por acabar reclusa no aparelho, imersa em sonhos secretos e desejos pelo guerrilheiro, ela perde a própria identidade militar - já que não participa, integralmente, da luta armada representada pelo personagem de Saulo. Ele é o típico indivíduo politizado, conscientemente engajado, sendo parte de grupos armados contra o regime militar. No universo alienado do apartamento, Cristiana passa a ter envolvimento psicológico e sexual com o bailarino encapuzado.
O filme pauta essa questão da traição, lealdade e também o dilema do ciúme. A moralidade, a confusão dos sentimentos e as motivações dos desejos são questionados sempre pela personagem que narra a história: ela vê que não há mais solução para seu relacionamento com Saulo, este tenta não se abalar pelo ciúme que desorganiza seu foco na política - ele considera um "sentimento pequeno-burguês" está enfraquecido por questões do amor. Estaria ela apenas vivendo uma ilusão? O novo amor seria a libertação de uma vida já firmada na perda de sua identidade? O sexo é prazer que liberta a alma confusa? O corpo pede, clama e sente tesão constantemente. A opção visual do diretor, com nítido cuidado plástico, auxiliado com beleza pelo diretor de fotografia Dudu Miranda, contextualiza a narrativa. A fotografia muda de cor e textura conforme o momento. No esconderijo, as cores são extremamente fortes/quentes; do lado de fora, a fotografia recebe tons azulados; e as cenas do passado, em flashback (momentos que mostram o início do namoro de Saulo e Cristiana), tem a beleza do preto e branco. O conceito visual aprimora a qualidade do filme, precioso elemento. A densidade colorida dentro do apartamento revela o teor sexual que reina ali, já o tom monocromático externo representa o abalo político de crueldade. Tem uma montagem interessante em que mistura créditos, imagens de arquivo e cenas dos personagens da história concebendo agilidade à narrativa. A trilha sonora tem canções de Milton Nascimento e Wagner Tiso.
E o roteiro mantém um certo erotismo em colocar Cristiana como a representação do desequilíbrio masculino - tanto Saulo quanto o guerrilheiro sentem um desejo desmedido por ela. E ela transa com ambos, em cenas de sexo ardente. Mel Lisboa é o misto da sensualidade e representa a feminilidade passional apaixonada. Sérgio Marone exala charme, masculinidade sexual em olhar e expressão corporal. E Felipe Camargo é sereno e mantém uma concentração interpretativa. O choque entre a vida afetiva e a participação política, sentimentalidade versus comunismo, são artifícios do roteiro. O filme mistura a política e sexo - os personagens ora pregam a revolução, ora fazem maratonas sexuais. Vivem entre o desejo e a utopia - a sexualidade e o desejo são trabalhados como a expressão da individualidade e a utopia como o sonho coletivo de uma geração. A coexistência desses dois elementos em um mesmo indivíduo e a interferência que um exerce sobre o outro são problematizados. O conceito sexualidade versus comprometimento social é anunciado desde a abertura de créditos, sendo facilmente compreendido. À beira do colapso emocional, os personagens vivenciam a loucura proporcionada pela solidão, com diálogos sempre auto-reflexivos. E no cárcere privado é onde o amor se torna aliado do sexo que gera uma superação coletiva. Grande filme nacional de apuro técnico e emocional.
26 opinaram | apimente também!:
taí... uma abordagem diferente de um tema já bastante trabalhado.
além disso, é uma oportunidade de ver a nossa querida Mel Lisboa bem à vontade... o que é sempre bom!
abs.
Discussão política, motivações sentimentais, erotismo, trilha sonora de Milton Nascimento e Wagner Tiso, solidão e superação...
Juro, terminei interessadíssima em assistir.
É sempre incrível vir aqui.
Obrigada e tenha uma excelente semana!
Assim relatado, o filme chama, atrai, instiga, e seu comentário já envolve-nos. Assistirei: registrado!
Beijos
O cinema nacional, de fato, chegou ao status de CINEMA. Não conheço este filme ainda, mas sei lá por que, lembrei-me de outro filme brasileiro sensacional: "O cheiro do ralo".
Mais um filme que eu nem sabia da existência e pelo visto parece ser muito bom.
Abs.
Ainda não conferi esse. Passo aqui para deixar mais um selo para você no CinePipocaCult.
Sempre curto muito suas dicas de filmes.
Garanto que ganhou um seguidor de frequencia e que aprecia seu BLOG e que depois pesquisa e assiste aos filmes!
^_^
Hum, gostei da análise, do tema do filme. Cristiano, você já analisou aqui "Cidade Baixa"???
Preciso pagar minha dívida com o cinema nacional.
Cris, boa-noite!
Passe no Olhar, que tem premio pra voce, viu.
Abraços.
Confesso que não conhece muito o cinema brasileir...
...Todavia como não se interessar pelo mesmo depois de ler um texto como este...
abraço
No mínimo interessante... isso me lembra algo revoltante no Brasil, porque obras cinematográficas como essa não são divulgadas? Enquanto o novo filme "porco" do Daniel Filho é falado em todos os cantos?
Apesar de termos um mercado ainda "emergente" na 7ª arte, é muito triste ficar conhecendo filmes feitos aqui somente anos depois do lançamento.
Olá meu querido amigo CRIS
Ainda não assisti esse filme, mas adoro esse lado fetichista de máscara. Achei bem peculiar esse detalhe no filme.
Além disso erotismo com Mel Lisboa como a garota sensual, enclausurada em um apto com um misterioso mascarado, nossa.... haha... preciso ver quais os desejos que esse filme me fará libertar, haha. beijo, meu amigo!
um filme que sempre que vou à locadora me chama a atenção, mas nunca o aluguei. Depois do seu texo, fiquei mais motivado a pegar =)
abração, Cris!
Cristiano nunca ouvi falar desse filme. Após ler sua análise vou correndo atrás dele...hehehe parabens peço blogger
Contreiras, é tão bom ver que o nosso cinema está amadurecendo. Ver que somos capazes de fugir do contexto violência-favela e ir para outros temas interessantes. Não conhecia esse filme, mas pelo visto vale a pena ser conferido. Ontem vi À Deriva e só me confirmou a boa fase do nosso cinema. Com orçamento restrito e ótimas mãos de cineastas, é um bom caminho que estamos trilhando.
Eu nunca tinha ouvido falar desse filme mesmo, concordo com o Jardel. Filmes assim são poucos divulgados, mas eu nem reclamo nem dos filmes do Daniel Filho e sim filmes da Xuxa que são mais divulgados que copa mundial aqui no Brasil.
Talvez seja por esse e outros motivos que não conheço filmes assim, além do fato de quem em Manaus só chega em cinema e locadoras filmes tipo: Seu eu fosse você, Xuxa no mundo mágico de alguém... (se é que existe esse)
Mas eu me interessei pela história filme, vou procurar ele na locadora.
Já havia lido sobre o filme, mas ainda não assisti.
Abraço
Bem, acho que só pela Mel Lisboa já vale à pena! Ô mulher-tesão...
Parece que eles uniram todos os ingredientes que apimentam a vida humana. e vc, como sempre, apimenta o meu desejo de assistir!
Nunca tinha ouvido falar, mas gosto bastante da Mel.
já vi uma cena desse filme e me pareceu mesmo muito bom
preciosa dica e precioso texto
Geralmente em filmes pode visualizar artisticamente um mundo real. Que dizem os Suspenses, policiais, etc. Belo espaço cultural. Obrigado pela sua visita. Um grande abraço!
Olha! Para te ser sincero Cris,achei esse filme uma tentativa mal engendrada de reproduzir Bertolucci em Os sonhadores. O filme não é de todo ruim, mas soa enfadonho as vezes. Pelo menos para mim.
ABS
Adoro a cena da dança.
A beleza do vinil tocando é inspiradora.
Belo texto! O filme parece bastante interessante e eu nunca tinha ouvido falar. Quero conferir!
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