Febre de amar

A trajetória deliciosa do amor emulado com ódio agridoce, do martírio consequente do romance trágico, ganha um novo verniz contemporâneo na releitura de Baz Luhrmann e do roteirista Craig Pearce no frenético Romeu + Julieta. Eis que o texto clássico de William Shakespeare adquire orgasmo vital na plasticidade estética, diante do ritmo efervescente da mise-en-scène e dinamismo interpretativo - além da deslumbrante fotografia que encontra gozo na gritante composição de cores que explodem e charme da direção de arte. O terreno é na fictícia Verona Beach, repleta de sexualidade e esquisitices. O amor impossível agoniza ali. Como não ter prazer com tanto esmero visual? Há maior amor que estar predestinado a sentir, passo a passo, as vicissitudes das feridas exaladas pelos amantes revigorados por Luhrmann? O amor é um fogo que se arde? Bem verdade, a sexy afetuosidade encarnada dos amantes de Shakespeare atinge a glória sensual nesta bela transposição moderna que é puro luxo conceitual. É sexual observar a história transposta aos dias atuais - sob os mesmos diálogos classicistas e versos da peça original - e vivenciar os entraves non-sense dos Montéquios e Capuletos, em meio a carros alegóricos conversíveis e pistolas estilizadas. É quase tribal a luta entre essas duas famílias mafiosas. Eis Verona Beach em sua insanidade, com destaques aos edifícios das grandes empresas das duas famílias rivais, aqui duas grandes industriais, e nas ruas os transeuntes envergando roupas coloridas, alguns gang-punk e outros drag-queen, criando essa contextualização trash-moderna proposta pelo visionário Luhrmann. Eis a delícia contemplativa de vivenciar os diálogos clássicos de Shakespeare sob o verniz moderno, sob os arranha-céus e cidade consumista atual. A atmosfera de ação desenfreada ganha molde com o romance trágico, ora é inquietude narrativa ora é tranqüilidade sentimentalóide.

Na concepção de Luhrmann, o amor de Romeu (Leonardo DiCaprio) por Julieta (Claire Danes) é ainda mais ansioso, desesperado, aflito impulsivo - repleto de hormônios. É a ânsia de amar por ser amado? O amante vê na mulher todo seu sonho, o desejo incondicional - é a chance de se viver, pois o amor é um vigor que liberta a alma e também o corpo. E Luhrmann desconstrói e reconstrói sua fábula febril, sob a imortal sabedoria de Shakespeare, no seu amparo visual, recursos marcantes deste diretor. Interessante que há cortes rápidos, dinâmicos e bruscos em cenas mais gerais - contudo, quando o foco é no casal, o amor amortece o ritmo e tudo tende a ser suspirado, calmamente. E a tensão é expressada, frame por frame. E há beleza testada. A cena que ambos se conhecem, pela primeira vez, através de um imenso aquário colorido, consegue ser mais impactante (conceitualmente) que a visão original Shakespeariana. A cena pulsa sensibilidade, ao som de "Kissing You de Des'ree", acentuando em close-up as expressões contagiantes de DiCaprio por Claire Danes - é Romeu apaixonando-se integralmente por sua amada Julieta. Nota-se a força da direção de Luhrmann na cena que prefigura o efeito meloso do romance intensificado. É tocante a expressividade do amor de um para o outro - se em poucos minutos fica evidente o sentimento fiel e platônico; rapidamente, tanto ele quanto a donzela, desmedem frases de efeitos do mais puro desejo da carne. Cenas extensas dentro do elevador ou emolduradas pela piscina - são beijos prolongados, trocas de juras eternas e toda aquela febre já conhecida por todos. Mas que, pontualmente, encontra mais determinismo, visto que os amantes idealizados por Luhrmann demonstram mais sede de amar e ter prazer - artifícios sexuais? A corporização juvenil é voraz, dois que fazem sonhar o mais impossível. A oralidade é um aspecto relevante, a começar com os diálogos: os atores falam inglês, mas não o inglês atual, surgindo um contraste entre o moderno e o antigo.

E Leonardo DiCaprio encarna o exato romântico passional, seus olhos azulados pulsam o brilho deste teor da verve apaixonada e seus gestos interpretativos são bem incisivos - eis um Romeu mais sexualizado? De fato, soube dar a cândida virilidade exigida pelo papel. Há olhares mais maliciosos, há beijos mais quentes, tônicas desta nova concepção moderna. A composição de DiCaprio mostra mais realismo: é humana, frágil, com vícios e seu tesão imediato transparece quando está em cena com Claire Danes. Esta transfigura uma Julieta menos inocente, mais altiva e também sensível - sua voz é bem imperativa, não expressa tanto um aspecto pueril assim. E há química sexual e bom entrosamento entre ambos, mais dignos pela força do texto rebuscado, ainda que o forte talento de DiCaprio seja mais contundente - e sua beleza também - dominando muitas cenas. Os coadjuvantes embalam mais a febre: Pete Postlethwaite como o Padre Laurence; Paul Rudd como Dave Paris; John Leguizamo convence como Teobaldo; Paul Sorvino é expressivo como o pai de Julieta e há o extravagante insano Harold Perrineau como Mercúrio. Alia-se, aí, a sonoridade de Garbage, The Cardigans, Radiohead como ícones musicais que concebem o pano de fundo da aura pop do filme. Luhrmann recorreu de todos seus métodos, sua pirotecnia com as câmeras ágeis - é a linguagem de videoclipe temperando as rimas originais de Shakespeare.

Observa-se o teor sexual do filme, mas é a religiosidade que impera estilo também. No início da película há uma estátua de Cristo que acolhe a imensa cidade de Verona. No decorrer da trama, Julieta está sempre cercada por imagens de santos e anjos - nota-se, também, o momento que ela própria se veste de anjo com asas. No epílogo da trama, a morte dos amantes é adornada por cruzes dentro de um imenso cenário de velas e luzes de neon. Assim que os corpos expirarem, as almas teriam a felicidade eterna? O tom cristão é presente na obra. É bom salientar também a própria ambigüidade criada no título do filme: "Romeu + Julieta" - o sinal de adição se assemelha ao aspecto da cruz, seria aviso que Luhrmann estaria voltado para esta visão de religiosidade no texto Shakespeariano? Há todo um conceito cuidadoso por trás dessa releitura - a dosagem de sentimento, do sexo e da religiosidade se mantém plastificado dentro da visão eloqüente de Baz Luhrmann que inova o texto do bardo, unindo a palavra e a imagem num resultado surpreendente.

Romeo + Juliet (EUA, 1996)
Direção de Baz Luhrmann
Roteiro de Craig Pearce e Baz Luhrmann, baseado na peça de William Shakespeare
Com Leonardo DiCaprio, Claire Danes, John Leguizamo, Pete Postlewaite, Paul Sorvino, Paul Rudd

29 opinaram | apimente também!:

Rodrigo disse...

Vi no cinema, a long long time a go, e até hoje, quando re-vejo, dá uma sensação tão boa.
A cena do aquário, entre tantas, é mágica.

Kamila disse...

Eu, sinceramente, não sou a maior fã dessa obra. Acho que ela remete a uma aparência clássica que não combina com essa modernidade do Baz Luhrmann. Mas, admiro a vontade dele de nos mostrar que uma história de amor como a de Romeu e Julieta é atemporal, e isso é a mais pura verdade.

Amanda Aouad disse...

"Observa-se o teor sexual do filme, mas é a religiosidade que impera estilo também." - Verdade, o filme tem o constraste do religioso ainda mais forte que o original, talvez para compensar tantos hormônios. Gosto da versão, da releitura, da cena do aquário, de Harold Perrineau dançando drogado. Mas, tendo ao purismo da obra original e do filme de Franco Zeffirelli.

bjs

Camilla disse...

Absurdo de lindo...
Obg pelo comentário.. Amei, de verdade!

Um beijo...

Rodrigo Mendes disse...

Eu gosto de transmutações e a Ballogh tem uma teoria ótima.

Este filme tem belas cenas, originalidade e um ótimo uso nos diálogos fiéis de Shakespeare, mas tenho momentos pra ver este filme escandaloso, que de tão brilhante irrita, de tão épico, irrita, de tão moderno, irrita...por ser loucamente exagerado irrita (Idem MOULIN ROUGE! e até o piegas AUSTRÁLIA).

Disse bem, esse amor é uma febre e a linguagem sem dúvida é muito videoclíptica.
A temperatura explode na tela e o filme também!
Até chegar a essa moderna versão, o público já sabe a premissa e o desfecho da história, portanto é interessante essa leitura. Agora imagine se não existisse a love story do casalzinho? O filme seria insuportável!
Eu prefiro a versão calma e fiel ou quase, de Zeffirelli (1968) com Leonard Whiting e Olivia Hussey. E a música de Nino Rota nesta versão é o hino dos apaixonados, rs!

Roseana Marinho disse...

Essa cena do aquário ficou marcada. Quando eu assisti pela primeira vez ao filme, ainda meio pirralha, não gostei muito. Mas deu uma segunda chance pra ele, anos mais tarde, e constatei como Luhrmann é sensacional. Foi o primeiro filme dele que me conquistou.

TH disse...

Excelente análise!
Transmutar a história pros dias atuais sem perder sua essência (atemporalidade) foi um desafio e tanto, contudo com todos os êxitos possíveis. Claro que alguns ajustes se fizeram necessários,
e concordo que, em determinados momentos, nota-se a concepção de um Romeu menos "cândido romântico', mas com alguma percepção sexual. Leonardo di Caprio brilhou neste que acho ser o ultimo papel de sua carreira que eu curti. E a trilha sonora da versão também é muito bem cuidada. ótima citação sobre a sonoplastia da cena, utilizando a música citada da Des'ree que é uma de minhas favoritas. :)

Alyson Santos disse...

Acredita que não vi?
Mas, o seu texto ta um dos mais ritmizados que já vi! Não é fácil colocar tanto embalo nas palavras como tu colocou e ir até o fim assim! Não sei se o texto ficou menor do que os demais, mas foi uma delicia ler. Sério mesmo!

Parabéns! Abraço!

Robson Saldanha disse...

Nem vi Romeu e Julieta ainda que queira bastante conferir!

Mirella Machado disse...

Ah, esse filme ficou muito bom, já pensei que nunca alguém teria tido a ideia de transpor para o mundo contemporâneo a história de Romeu e Julieta a não ser Baz e no fim ele acerta e fica um belo filme. Adoro as cenas iniciais, pra quem nunca viu é quase um choque a linguagem coloquial do filme. Bjos Blogmurus.

Tania regina Contreiras disse...

Preciso rever um dia, faz tempo que assisti. Mas lembro mais ou menos bem da cena do aquário...

Beijos,
Tânia

leo disse...

acho esse filme incrível em todos os sentidos !

Anônimo disse...

Também não sou fã desse filme, apesar, de apreciar sempre a forma de direção de Baz, talvez seja muito pela linguagem fiel que o filme usa.

Unknown disse...

Todos que conheço e assistiram esse filme ficaram revoltados com as liberdades tomadas; "Trazê-la para os dias de hoje descaracterizou completamente a história"... será? Confesso que nunca me senti muito atraído pela versão original, sempre pomposa e inflexível, mas - ao saber dessa adaptação inusitada - fiquei interessadíssimo em conferir. Não seria, esse, ums dos proósitos primários dessa experiência?

joyce Pretah disse...

eu amo a versão do franco zeffireli....o clássico...mas acho tbm que romeu e julieta é uma hisstoria atemporal.....e este filme é bom por dar uma outra roupagem...ainda assim,interessantíssima!


ps:adoraria ver algum post sobre luiz bañuel^^


beijo querido^^

Marconi disse...

Eu gosto muito dessa versão de Luhrmann. Gosto principalmente porque ele mantém quase que por inteio so diálogos originais da peça. Isso dá qualidade e eutenticidade ao filme. Mostra que a história contada é "timeless".

Hugo disse...

Este filme já passou diversas vezes na tv a cabo, mas não tive vontade de assistir.

Quem sabe darei uma chance numa próxima vez.

Abraço

Wallace Andrioli Guedes disse...

Filme foda e subestimado pelo público.

Edson Cacimiro disse...

Quando a gente fala "trazer para os dias de hoje" acontece um pequeno equivoco, pois a história é atual, quando se representava na época de Shakespeare já se fazia 'nos dias de hoje' naquele tempo. Vale ressaltar tb que a adaptação foi bem elogiada com todo seu visual vídeo clip e fidelidade ao texto, tem também uma outra versão WEST SIDE STORY que é em cima dessa mesma peça.
P.S. adoooooro a cena do baile onde ele dança drogado!!!

Wally disse...

Adoro este filme. Talvez, alias, até mais que o clássico de Zeffirelli. Adorei sua descrição: "orgasmo vital na plasticidade estética".

Elaine Crespo disse...

Oi Cristiano!

Adorei o enfoque que você da ao filme e apesar de toda beleza das outras versões esta é a que mais me agradou.
A mistura do texto clássico a imagem moderna deu a obra um toque diferente junto com a genialidade do diretor e roterista !
Não esquecendo da trilha e do elenco principal que estavam perfeitos!
Tenho ele postado e diferente de você eu comento o filme relacionando sempre ele com minha vida pessoal ou o impacto que o filme traz ela.

Perfeito teu blog vou adicionar e seguir também!

Voltarei outras vezes para ler os posts mais antigos!

Um belo fim de semana!

Beijos
Elaine

Elaine Crespo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Richard Mathenhauer disse...

Sou um bardólatra... tudo bem, um grande admirador de Shakespeare, e esta versão de Romeu e Julieta transportando os personagens para o tempo moderno mas com linguagem ainda presa ao passado é um filme muito bom. Gosto muito.

Abraços,

Peter Cera disse...

Novo vigor para um texto eterno. Aposta de risco em tons quentes, se odeia ou ama. O que resta é um achado, respiramos as letras de Shakespeare facilmente através de interpretações corretas.

Peter Cera disse...

Novo vigor para um texto eterno. Aposta de risco em tons quentes, se odeia ou ama. O que resta é um achado, respiramos as letras de Shakespeare facilmente através de interpretações corretas. Belo filme.

Tiago Britto disse...

Já vi esse filme, mas sei lá...não me convenceu! abs

www.cinemadetalhado.blogspot.com

Beatriz Barbosa. disse...

Eu, particularmente adoro essa obra. Na minha opinião ele tem cenas maravilhosas! A do aquário é a melhor, né? Rs.

Beijos querido! :)
Estou te seguindo.

Cristiane Costa disse...

Oi Cris,
Eu estou bem, mas com umas probleminhas básicos, nada trágico.


Seu texto está estupendamente bonito, como a história de amor. Viajei nas suas palavras.

Engraçado... a música da Des'ree é praticamente a música do grande amor da minha vida e ainda que eu ache o filme excelente e ame esta obra Shakesperiana, eu tenho uma relação bem indiferente ao filme, não é um longa que me faz ferver de amor. Eu prefiro o de Zefirelli porque me mata mais de amor, rs!

bjs

PS: ótima relação sobre os símbolos religiosos. Será uma contraposição sacro x profano? rs

Elton Telles disse...

Esse eu vi já faz alguns milênios. Tinha acho que menos de 10 anos quando assisti, então não posso deixar a minha opinião concreta sobre o filme. Mas lembro que não gostei...

Claro, sendo mais familiarizado com a obra de Shakespeare e o virtuosismo de Baz Luhrmann, é praticamente obrigatório revisitar a fita, mas não tenho muita pressa, nao rs.


abs, Cris!

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