Amor Lúdico

É cabível um ser humano apenas querer viver da mais pura realização sentimental? Como estar apto a alimentação diária da amorosidade que reafirma a vitalidade da vida? Eis que a necessidade de estar condicionado ao amor possibilita a chance de eternidade. Do amor nada sabe, mas é uma dádiva. É estar apaixonado que se viabiliza toda a felicidade do corpo, alma e existencialismo. O amor concebe a esperança, prova concreta de que o mundo é tangível aos olhos de Deus. Cidade dos Anjos providencia um singelo argumento sobre os entraves da espiritualidade e o confronto com o âmbito terreno humano. A delícia é sentir toda a emulação prazerosa da sentimentalidade exalada em cada cena, num trabalho cinematográfico sincero de romance intimista. O foco é em Seth (Nicolas Cage), um anjo que transita pela Terra consolando, dando conforto aqueles que estão, de alguma maneira, a um passo da morte. Maggie (Meg Ryan) é uma cirurgiã bastante prática, dedicada com a profissão e extrema racional que se abala, após a perda de um paciente. Este singelo trabalho é inspirado no belo filme alemão “Der Himmel über Berlin”, ou simplesmente Wings of Desire, de 1987. Como tentar entender o destino? Quão misterioso é o plano terreno e sua relação com espiritualidade? Inesperadamente, Seth se apaixona veemente por Maggie - e é assim que o roteiro de Dana Stevens se intensifica.

O desenvolvimento da relação dos dois é gradual, visto que, inicialmente, Seth não se apresenta fisicamente a Maggie: ele a acompanha em todos os lugares, exímio protetor de seu cotidiano. Maggie sofre bastante com a perda do paciente, então tem seus delírios e suas lágrimas compartilhadas pelo anjo que se torna um forte elo de amorosidade. Seth sente um sentimento que nunca vivenciou, causando certa confusão inicial. Decidido a permanecer ao lado de Maggie, preservando e envolvendo-a de cuidados - Seth opta por conquistá-la, resolver se materializar. A aproximação ocorre, o destino concebe o inevitável: Ela também se sente atraída por ele. Criam-se laços, admiração e uma nítida amizade. Como entender o homem que exerce algo misterioso ao seu redor? Como entender este desconhecido que tanto a quer bem? Maggie não consegue explicar, mas sua atenção rapidamente reflete em tudo que é relacionado à presença deste novo homem em sua vida.

O interessante é a relação oposta entre os dois. Seth nutre algo lúdico, um amor platônico e sensível em relação à mulher terrena - é ela que faz com que ele repense sua condição espiritual. Ele passa a sentir necessidade de estar ao lado, dividindo momentos e amadurecendo a convivência. E questiona sua condição de anjo: será possível viver este amor impossibilitado pelos entraves da alma e matéria? Como tornar possível este sentimento tão puro? E ele é o símbolo da fragilidade, da benevolência e da pureza no filme. De fato, é um trabalho cinematográfico que preza pela emoção intimista aliada a essa proposta altamente sensorial. Seth não tem malícia, é até bastante inocente, desconhece todos os prazeres da carne - conclui-se que seu amor direcionado à Maggie é algo integralmente, inicial, dotado de pureza. Por ser uma criatura divina, não só desconhece sensações sexuais como desejos de fome e noções de medo ou dor. O ser celestial não pode sentir calor, nem o vento no rosto, o gosto de uma fruta ou o toque da sua amada - assim ele cogita em deixar de ser um imortal para poder amar e ser amado intensamente. Ele é um ser que tenta conceber paz espiritual e conforto à humanidade, mantém a harmonia terrena e silenciosamente é capaz de levar serenidade ao coração dos humanos.

Já a personificação terrena é expressa por Maggie: feminina, dotada de imperfeições e vícios de mundo. Sua personalidade, ainda que bastante determinada, é na realidade frágil - sente necessidade de ter alguém ao seu lado, por vezes exterioriza sua fraqueza perante adversidades do cotidiano. E, ao conhecer Seth, sente-se atraída. Move-se pelo tesão: vê nele um homem capaz de proporcionar não só carinho, atenção e sentimentalidade - mas, há um desejo violento que se faz valer. Maggie o deseja sexualmente assim que o vê. E eis que a verve amorosa do filme atinge o ápice quando Seth decide mudar sua condição: transforma-se em humano para estar ao lado de Maggie. A cena que ele despenca do alto em direção à humanidade é um momento precisamente belo - é o encontro do anjo com a humanidade. E ele simboliza o homem obstinado pelo amor inquestionável. Talvez, o típico romântico que abdica de sua eternidade para viver, ainda que seja, um segundo ao lado da amada. Abre mão de sua imortalidade, assumindo o ônus de seu livre-arbítrio. Como selar o amor com o dom da eternidade? E Maggie também se permite ao desconhecido: afinal, a paixão impulsiona tudo.

É um filme que percorre emoções reais, principalmente pelo tom dos diálogos bastante francos. O diretor Brad Silberling consegue ter o cuidado de preservar a intimidade da relação não-casual de Seth e Maggie. Decerto, há uma composição notória de Nicolas Cage como o anjo que sofre de amor natural e questionamentos íntimos - é a maneira como ele direciona um olhar terno, um gesto sutil ou um movimento em cena. Meg Ryan expõe seu talento aos filmes mais românticos, além de ter uma química cativante com Cage. Sintonia expressiva. Seth e Maggie funcionam como um casal que procuram um amor tranqüilo, um auto-descobrimento, a vivência da emocionalidade a dois.

Instigante a maneira como se processa a criação da figura dos anjos no filme: diferem da conhecida projeção visual: usam roupas negras e coturnos; gostam de reunir-se para observar o nascer e pôr-do-sol. Há elementos simbólicos que conceitua o roteiro e certas cenas os atores apenas expressam através de olhares - há ainda, dentro do tom intimista, um dinamismo da boa edição de Lynzee Klingman. A trilha sonora adquiri um tom pop com músicas de Goo Goo Dolls (em especial a música Iris), U2 e Alanis Morissette pontua o estilo do filme. E a fotografia de John Seale providencia tons brilhantes, imprescindíveis para a plasticidade da película. Há contextos de espiritualidade, desejo carnal e humanidade expressa em muitas cenas. Pauta a importância do ser humano estar preparado para o imprevisível. O filme remete a concepção da própria efemeridade, do amor que reorganiza intimamente um ser e como tudo pode ser eterno - ou não. É sobre amar e ser amado, do encontro de duas almas. É pura metafísica ou mesmo face espiritualista. Amar é transcender.

City of Angels (EUA, 1998)
Direção de Brad Silberling
Roteiro de Dana Stevens

Com Nicolas Cage, Meg Ryan, Colm Feore, Dennis Franz

28 opinaram | apimente também!:

Davi Coelho disse...

Ah, a velha cafonice dos anos 90.
Cidade dos Anjos ficou preso por lá, junto com 'Ghost' e mais um punhado de filmes que a maioria hoje tem vergonha de assumir que um dia já curtiu.
Engraçado é ver você conseguir escrever tanto sobre.
Abraço, Cris! :D

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Você explanou muito bem sobre o filme. Gostei dele e nos faz pensar sobre anos e espiritualide. É, senti que o anjo tentou ser homem de novo por causa do amor. Ela passou a ser o anjo dele, na terra. Muito boa essa relação mulher(gente)/ anjo. Um abraço

ANGELICA LINS disse...

Nossa, segundo o conceito de cafonice do Dave aí acima - eu sou cafona, porque gostei do filme :)
Acredito também que o amor transcende (escrevi até sobre isso esses dias)

Beijo Cristiano
(estou sempre por aqui lendo-te, mesmo quietinha)

Bruno Cunha disse...

O filme é um pouco controverso e o final surpreendente mas melancólico. Por outro lado, temos as personagens e que tu descreves perfeitamente ao referir Cage como (quase)perfeito e Ryan com imperfeições, normal deste mundo.

Abraço
Cinema as my World

Érica disse...

O amor é o que movimenta. Todos vivem em função disso. Amor é base, apesar de ser para poucos.

Beijos

Unknown disse...

Assisti aos dois, Cidade dos anjos e Asas do desejo, são muito belos plasticamente e tem trilhas sonoras bonitas,

abraço

Leco Vilela disse...

Ao contrário do comentário anterior, esse filme tem muito a se escrever sim, pois é cheio de simbologia e entrelinhas, como vc mesmo descreveu. Não é um filme que eu goste vá lá. Mas confesso que esse filme me fez gostar de pera! hehehe...

Agora gostaria de fazer uma pergunta sobre o texto.

O porque você deixa o texto tão longo assim?... Sendo que lendo é bem possivel resumi-lo sem perder o eixo e a levesa.

Alan Raspante disse...

Gosto muito deste filme, principalmente o final, o final é de MATAR -literalmente- MUAHHHH!
Como sempre ótima resenha!
Abs.

Wallace Andrioli Guedes disse...

Quando eu vi, há uns 10 anos atrás, achei bem bonito... precisava rever, assim como preciso rever ASAS DO DESEJO. Mas, de qualquer forma, a história do anjo que quer ser humano é mesmo um primor. E a música do Goo Goo Dolls é grudenta mas é legal.

Lua Nova disse...

Assiti esse fime e fiz muitas reflexões a respeito da espiritualidade. Sou apaixonada pela figura do "anjo" e passei a gostar mais ainda. Não entro no mérito do "valor" do filme. Isso é muito particular.
Beijos.

Emmanuela disse...

Eu me emociono muito com o filme e acho muito válido se deixar levar por emoções mais profundas que o cinema é capaz de proporcionar acima de qualquer outra arte.

cinemapelaarte.blogspot.com

Kamila disse...

Para falar de forma bem simples e rápida: este filme é lindo e triste, como todo amor, às vezes, é. Adoro! Acho um dos excelentes filmes de romance dos últimos tempos.

Clenio disse...

Bom...

Anos 80 acho que não, hein, uma vez que o filme foi lançado em 1998...

É um belo filme, com uma fotografia deslumbrante, uma trilha sonora emocionante e que suscita discussões bem interessantes sobre amor, morte e fé...

Adoro a Meg Ryan nesse filme e até o Nicolas Cage está passável. Choro muito no final - mesmo porque tem Alanis Morissette cantando - e prefiro essa versão "pasteurizada" do que o original alemão, podem me crucificar...

Abração
Clênio
www.lennysmind.blogspot.com
www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com

Fábio Henrique Carmo disse...

Cristiano, você já viu o original "Asas do Desejo"? Na realidade este "Cidade dos Anjos" é uma remake bem inferior ao original. Não é ruim, mas é muito pálido quando comparado à obra-prima de Win Wenders, que possui não apenas um viés romântico-existencial, mas também socio-político. "Asas do Desejo" é um dos meus filmes preferidos, está no meu top 10.

Amanda Aouad disse...

Apesar da eterna cara de choro de Nicolas Cage, adorei Cidade dos Anjos quando vi, a questão que você frisou no texto sobre amor, espiritualidade, etc, é bem construída. Após ver o original, Asas do Desejo, fui comparar os dois e o de Wim Wenders é superior em vários aspectos, principalmente nos questionamentos. Mas, acho que a amerizanização da história tornou-a mais acessível ao público em geral. Asas do Desejo é um filme de difíl digestão. Hollywood tem a capacidade de tornar a arte popular. No fim, gosto dos dois.

beijos

Tania regina Contreiras disse...

Ah, fiquei com vontade de assistir Asas do Desejo, depois de ler os comentários. Cidade dos anjos assisti faz tempo, gostei, e o amor é mesmo canfona, viva a cafonice do amor e viva a todos os cafonas que não se perderam nesse sistema que faz a cabeça de tanta gente e deixa alguns com vergonha de amar, simplesmente!

beijos,
tania

Adá disse...

rapaz, o blog está bem bonito e com conteúdo! parabéns e aquele abrá!

Adá disse...

rapaz, o blog está bem bonito e com conteúdo! parabéns e aquele abrá!

Robson Saldanha disse...

Ótimo texto, ótimo filme. Acho um filme bastante próprio e original. Preciso rever pra ontem.

D. Marafon disse...

Bem interessante o conteúdo que você tem por aqui... Linkei o seu blogue no meu... e valeu pelo comentário, fico lisonjeado com o 'cronista' hahaha

Lidi disse...

Assisti, recentemente, "Asas do desejo" de Wim Wenders e percebi o diálogo com "Cidade dos Anjos". No entanto, o primeiro é superior, sem dúvida, mas a versão americana tem o seu valor. Gostei da resenha, Cristiano. Você escreve muito bem. Um grande abraço.

Wally disse...

Podem chamar de cafona ou piegas, mas acho lindo esse filme. Trilha maravilhosa, atuações convincentes e aquele romance trágico irresistível.

Anônimo disse...

Se eu dizer que esse é um filme "para meninas" estaria sendo meio ... bom, é complicado falar sobre ele, acho muito banal e descartavel, enquanto a grande maioria o adora!

Richard Mathenhauer disse...

Um dos filmes que revi exageradamente! (E a trilha sonora, então?!).

Abraços,

Cristiane Costa disse...

Cris,
Que bonito! Este é um dos meus romances preferidos e, como bem dito, o amor transcende aqui, além do físico, do espírito.

O que me fascina e, ao mesmo tempo, me entristece é o sacrifício que Seth faz por amor e, então, uma tragédia troca os de condição espiritual. Amar também é sofrer, do sacrifício inicial até o final do filme.

bjs

Mirella Machado disse...

Sua resenha está ótima, passou até pela trilha sonora que marcou o filme. Acho esse filme muito bonito, um dos primeiros desse gênero que gostei de verdade. O enredo é perfeito, ao meu ver, e é claro com aquele final trágico muito capaz de provocar lágrimas. Adoro o filme. Bjos

História é Pop! disse...

Meg Ryan durante muito tempo foi uma das minhas atrizes prediletas e seus dois últimos bons filmes – no meu ponto de vista – foram Mensagem Para Você e Cidades do Anjos,Rayan está muito decadente tanto fisicamente quanto nos filmes que tem protagonizados. Mas deixando isso de lado vamos ao comentário do filme...
Discordo do Dave Coelho, "Cidade Dos Anjos" não é cafona é daqueles filmes que nos tocam, nos cativam e nos fazem apaixonar sem ser repletos de clichês , - alias, ele foge totalmente do inesperado das historia de amor, do felizes para sempre - o que me encanta nesse filme é justamente o processo de criação do mundo dos anjos. É tudo muito perfeito, minuciosamente trabalhado. As roupas com que os Anjos perambulam pelas ruas, seus diálogos escassos, porém convincentes, suas posturas, seus encontros ao nascer do sol e ao pôr-do-sol; tudo isso criava um clima que Brad Silberling soube tocar pra frente com maestria incrível.
Um excelente filme...

Anônimo disse...

I never thought I would agree with this option.

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