Os Incompreendidos

Eis um filme repleto de intensidade, arte realista de grande primor. A Criança é um excepcional trabalho independente, verdadeiro como poucos. Dirigido e roteirizado pela dupla de irmãos Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, trata-se de um singelo retrato naturalista que foca no cotidiano de um casal de jovens namorados que enfrenta problemas financeiros numa pequena cidade da Bélgica. Bruno (Jérémie Renier) e Sonia (Déborah François): dois imaturos, delinqüentes e típicos rebeldes que sobrevivem em meio aos pequenos furtos que cometem. Totalmente imersos na perspectiva do mundo particular, vivem fora das convenções - não têm emprego, nem mesmo perspectiva de um futuro qualquer. Quando nasce o filho do casal, eis que o roteiro, muito bem conceituado, ganha vigor: Como fazer para sustentar essa criança? Como lidar com tamanhas responsabilidades? É assim que este filme se determina, aborda um nítido exemplo de juventude contemporânea. Bruno e Sonia, ainda que apaixonados, não compreendem a responsabilidade de ter um filho. Ambos enxergam com grande oposição o significado da chegada desta criança - e é então que a problemática se evidencia: Bruno encontra no bebê uma forma de aplicar mais golpes, usando-o para obter lucros. Seria, de fato, a única forma de lidar contra a sobrevivência? Quão absurdo pode ser este ser humano? O filme retrata com calor humano a trajetória íntima desses dois casais que, obviamente, são sinônimos de uma juventude à beira do caos da irregularidade comportamental, diante de problemas e abalos emocionais.

Bruno e Sonia são altamente infantis, determinam seu dia com brincadeiras constantes, birras e um entrosamento que beira a uma cumplicidade incondicional. De fato, ambos expressam um intenso amor juvenil capaz de enfrentar problemas demais. Ambos parecem não refletir muito da realidade cruel ao redor - ausentam-se das responsabilidades para viver apenas da mediocridade. Desempregados, aliam-se à desonestidade e à persistência pela rebeldia. Dormem em albergues, acostumam-se. Entre afagos, brincadeiras e paixão efervescente - nota-se o desapego à família, o prolongamento da imaturidade. Ignoram a responsabilidade, apenas distraem-se nesta estranha vida a dois. Em meio aos furtos, cigarros constantes e discussões banais - o casal dialoga com a vida. Lidam com a sobrevida? Mas, Bruno comente o absurdo de vender o filho em troca de alguns euros. Vende-o à adoção. É então que a sintonia do casal enfraquece, o elo se quebra. Como pode ser tão insensível? Como um pai faz isso com um filho? Mais que irresponsabilidade, é a crueldade de um crime? E essa amoral atitude de Bruno que centraliza grande parte da emocionalidade do filme. É através de seus impulsos que a narrativa encontra direcionamento. Mas, há culpa nos atos cometidos por ele e o arrependimento torna-se compulsório, conseqüentemente. Afinal, a vida não pode ser feita apenas de trocas, venda - um ser humano não deve comercializar outro. E é essa noção que afeta Sonia: descrente, sem confiança, ela tonifica seu ódio e incompreensão pelo namorado. Como tentar remediar essas conseqüências? Há chance de recuperar o filho? Irremediavelmente, o senso de responsabilidade caiu tarde demais em Bruno. Como estabelecer, novamente, o elo entre eles? A unidade dramática se concentra totalmente no casal.Posteriormente, Bruno vivencia a catarse - sua redenção será merecida?

O cuidado minimalista na direção dos irmãos Dardenne acentua-se em cada cena prolongada, sem qualquer uso de trilha sonora - cerca os dois personagens, intimamente, sem perder nenhum gesto ou mesmo diálogo verbalizado. Tangível, tão realista, consegue ter um grande efeito por colocar o psicológico com tanta evidência. A impressão é que nada ali foi prefigurado, mas sim um casal real tendo sua vida esmiuçada por uma objetiva irrefreável. Há um tom documental com o misto da ficção dramática e da poesia imagética - há sequências que as câmeras percorrem os atores em planos sem corte, demonstrando a habilidade da direção em destacar os movimentos corporais e da esfera interpretativa precisa. O tom de verossimelhança se concebe. Típico estilo do tradicionalismo do cinema francês, pós "Nouvelle Vague", percebe-se um tom natural escancarado: a câmera frenética foca os personagens nas ruas, persegue-os, espia e exibe seus contornos existenciais (a concepção do Dogma 95 se expressa?). Em sua forma, conteúdo e premissa: um filme sensível, mas cruel. A emoção surge dos momentos silenciosos do casal, no envolvimento e na percepção de um para o outro - a sociedade os ignora? Jérémie Renie exerce um desempenho soberbo como Bruno, o tom desolador da película é determinado por sua composição dedicada. E há bastante química dele com Déborah François.

Aliada às belas imagens, os diretores Dardenne buscam uma história humana, com personagens limítrofes lutando para manter – ou recuperar – algo que perderam, geralmente um valor moral, embora metaforicamente esse seja representado por algo material. Pode-se julgar os atos desse casal? Como compreender as dificuldades expostas e também a impulsividade de Bruno? A ambigüidade de todo o filme começa com o título. Se numa primeira leitura, a palavra “criança” se refere ao recém nascido que muda a ordem pré-estabelecida da vida de Bruno, o termo também se aplica à condição do casal. Os dois, na verdade, são duas crianças quase tão despreparadas para o mundo quanto o recém-nascido. É um sensível filme providenciado com afinco pelas lentes dos Dardenne. Toca a condição humana. São dois perdidos na histeria do mundo moderno com luzes, tráfegos e rodeados por transeuntes. Há dor neste casal que aparenta infelicidade. Em Bruno, há um homem que se recusou a crescer: eterno adolescente amplificado no qual se condicionou a sobreviver sem querer integrar-se socialmente e membro produtivo da sociedade. Mas, todo ser humano há de crescer. O filme se abstém de julgamentos, em momento algum recrimina-se o casal - pelo contrário, há um olhar condescendente em torno deles. Todo ser humano erra, tem imperfeições - a reflexão vem dos atos de arrependimento. Eis um drama sensato, comovente e vital que retrata as mazelas sociais dos marginalizados e esquecidos pela sociedade – da juventude errante, perda da inocência e amor consistente.

L’Enfant (Bélgica/França, 2005)
Direção de Luc e Jean-Pierre Dardenne
Roteiro de Luc e Jean-Pierre Dardenne
Com Jérémie Renier, Déborah François, Jérémie Segard, Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet, Stéphane Bissot

28 opinaram | apimente também!:

Dan disse...

Interessante. Acho que todo mundo tem uma atitude infantil às vezes. Bom pra uma auto analise. Boa dica rapaz!
abraço

Vanuza Pantaleão disse...

Cinema, isso é bom! Eu volto!
Parabéns!!!

Franck disse...

Vc, como sempre, nos dando dicas de filmes que são pérolas...esse dve ser muito bom, só em ler sua crítica, deu vontade de ser um pouquinho criança hj, pelo menos vendo o filme!
Abçs!

Marilia disse...

Interessante demais!
Vou procurar porque quero ver como o retrato dessa nossa juventude, que não tem a noção do que é ter um filho, dessa responsabilidade, está se portando.

E fico satisfeita em ler que isso foi retratado de forma bem pungente!

M. disse...

Taí uma ótima dica de filme: vou assistir! Gostei muito da história. Tenho admiração pelo cinema francês.

Tania regina Contreiras disse...

Ah, esse de ler deu vontade de assistir. Gostei muito da sua nálise, espero que o filme esteja à altura!
Bjos

Fábio Henrique Carmo disse...

Eis um filme que sempre tive vontade de assistir e nunca vi. Boa dica!

joyce Pretah disse...

já estou baixando o filme,estou muito curiosa por assistir^^

bjo,cris

cleber eldridge disse...

Por infotúnios, eu nunca tive a chance de assistir ... mas, aparentemente é um filme comum, mas, preciso conferir assim mesmo!

Rodrigo Mendes disse...

Assisti no em breve extinto, HSBC Belas Artes aqui em São Paulo.

Um bonita história. Muitos não compreenderam esse filme. Ficou pouco em cartaz.

Ótimo você trazê-lo ao apimentário!

Abs,
Rodrigo

Kamila disse...

Dos irmãos Dardenne, só assisti "O Silêncio de Lorna". Já ouvi falar muito deste filme aí, mas nunca tive a oportunidade de conferir. Ele parece ser muito bom!

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Olá amigo!

Vi-o num outro Blog que acabei de visitar e o seu comentário despertou a minha curiosidade.
Aqui vim parar...
Deparei com um tema apaixonante. Para além de ser cinéfila compulsiva (mesmo não tendo ainda visto este filme, cujo "plot" adorei), li tudo num ápice pelo assunto que aborda mas também, e muito especialente, neste caso, pela forma incrível como está escrito o texto.
PERFEITO.
Parabéns.
Dou-lhe 20 valores!

Voltarei, já sou seguidora.
Abraço.

Na Quinta do Rau

Tiago Britto disse...

Gostei de sua indicação!
Vou procurar este filme e assisti a essas besteiradas de crianças que fazemos de vez enquando!!!

abraços

it was RED - Para quem gosta de cinema disse...

Propaganda enganosa. Fez-me crer que era Truffaut.

Boa indicação.

Abraço!

pseudo-autor disse...

Quase me deixei trair pelo título nacional (de uma obra máxima do Truffaut). Assisti A Criança no Maison de France e, confesso, o filme mudou a minha concepção de vida. É lúdico como há bastante tempo não tenho visto no cinema.

Reinaldo Glioche disse...

Não é à toa que os Dardenne viraram queridinhos em Cannes. Esse filme é bom sim, mas não o tenho em tão grand estima. Deles, prefiro O silêncio de Lorna.

abs

Vanessa Sagossi disse...

Gostei. Quero ver!
Vanessa Sagossi,
comentandoofilme.blogspot.com

endim mawess disse...

gostei do roteira parece mais um daqueles filmes que fazem agente molhar os olhos, sua critica mais uma vez daquele jeito que eu já disse antes

Emmanuela disse...

Não é novidade para mim quando seus textos despertam a minha curiosidade sobre um filme que ainda não assisti. Parece tão cruel quanto libertador, quando resolve livrar os personagens da responsabilidade inevitável que acompanha uma vida adulta. Porém, quando me baseio naquilo que li, a crueldade toma forma quando o desprezo da sensibilidade irrompe no cotidiano do casal.

PS: Obrigada MESMO pelas suas visitas, é sempre gratificante recebê-lo

Wallace Andrioli Guedes disse...

Grande filme dos irmãos Dardenne. Intenso, realmente, e dramaticamente poderoso. E acho o casal de protagonistas comovente.
Aproveito para indicar, caso ainda não tenha visto, o outro filme dos Dardenne que também levou a Palma de Ouro em Cannes, ROSETTA. Também belíssimo.

Mayara Bastos disse...

Belo texto! Estou que nem uma louca procurando esse filme. Não assisti nenhum dos irmãos Dardenne, mas queria começar por esse, que parece triste, mas ótimo. ;)

Elton Telles disse...

Bela análise, Cris!
texto à altura do filme. Os irmãos Dardenne são sensacionais, entregam filmes de simples argumentos e naturais, mas que se tornam memoráveis devido a fidelidade que eles têm com o projeto.

"A Criança" não é diferente, embora meu preferido deles seja "O Filho".


abs! o/

Alyson Santos disse...

Nossa! Preciso ver o filme, pois apareceu na hora certa! Tenho uma palestra sobre "Afetividade e Sexualidade" para apresentar e a história cai como uma luva!

O texto também me fez lembrar de um filme sueco, ao qual eu vi para baixar um dia e nunca mais achei. Se trata de uma narrativa semelhante, mas o pai da criança acaba por virar garoto de programa.

Enfim, ja vou atrás desse filme e pegarei seu texto como referência.

Abraço!

Mirella Machado disse...

Eu já havia pensado nessa ambiguidade do nome do filme antes de você mencionar rsrs.

Essa história reflete muito o cotidiano dos jovens que resolvem "assumir" responsabilidades cedo e acabam não tendo maturidade para lidar. Cris sua resenha está ótima, mas eu vou te confessar que os filmes estão cada vez mais dificeis de achar pra loca. Bjos

Edson Cacimiro disse...

Valeu pela dica, encontramos vários 'brunos' por esse mundo afora.

Amanda Aouad disse...

Olha eu aqui, hehe. Não parei de visitar, leio todos os textos do Apimentário, o problema é que os últimos filmes não conferi nenhum (estou até me sentindo em falta por isso), aí fiquei sem querer comentar o de sempre "ótimo texto, preciso conferir o filme", hehe.

bjs

Renato Oliveira disse...

Nossa, parece bem inusitado! nunca tinha ouvido falar sobre este filme.. mas realmente aparenta ser um trabalho diferente, daqueles que tem algo a dizer pela história em si, não só pela produção. :)

abraços

Vitor Silos disse...

Oi Cristiano
ainda não vi esse filme, me parece ser interessante, muito obrigado pela dica do anime, irei procurar.
Estou te seguindo cara.

abraço

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