Amor Despedaçado

Como expressar as próprias vontades de ser feliz em meio a uma relação que beira ao caos? O que deve ser feito para tornar a vida algo mais prazeroso? O diretor Sam Mendes toca na ferida da sociedade ao desconstruir as intimidades de um casal no intenso Foi Apenas Um Sonho, baseado no livro de Richard Yates. O foco da narrativa centraliza o estudo na instrospecção melancólica, problemática e existencial de um casal em crise. Frank Wheller (Leonardo DiCaprio) é um vendedor de seguros que não tem satisfação com a vida que leva, o tédio invade até os poros do seu âmbito profissional. April (Kate Winslet), uma infeliz dona-de-casa, mãe de dois filhos, não consegue ter prazer na vida que se submete - seu sonho era ter sido uma atriz de teatro, mas nem para esse anseio teve bons resultados, só fracasso. O que fazer quando uma insatisfação generalizada invade o cotidiano de um casal? É quando o tédio torna-se opressor, a tristeza avassaladora e a euforia da passionalidade da paixão parece se perder quando a rotina se instala. O longa-metragem desnuda as relações íntimas de um casal a ponto de explodir - eis o apocalipse conjugal de um matrimônio típico de integrantes da classe média norte-americana dos anos 50. E, também, é o ponto-chave do roteiro de provocar uma crítica meticulosa sobre os abalos das frustrações dos laços de casamento, das crises da própria identidade e do lema American Way Of Life - recurso bastante característico da filmografia do diretor. O estopim do filme é providenciar um olhar aos conflitos do microcosmo interior conjugal com o mundo externo - o que fazer quando não se encontra mais uma química a dois? Como um casal deve lidar com insatisfações incondicionais? Como atenuar as situações fora de controle? A descontrução do sonho utópico americano é a pauta deste trabalho que consegue ser nítido numa linguagem narrativa bastante realista. Como entender as desilusões ocorridas pelo destino? Um casal que se torna cárcere da própria convivência viabiliza um apelo universal - o que deve ser feito?

Abstendo-se da excelência técnica, visto que é um diretor que tem apreço pela estética na condução de suas cenas, aqui Sam Mendes prioriza seu estudo detalhado na intimidade de um casal em busca de auto-reflexão - o tom pessimista do roteiro é o recurso encontrado pra mostrar o assombro das ênfases dramáticas que impulsionam o melodrama do filme. Frank e April sofrem por não ter uma vida que realmente querem - então, ardem de desespero pelas escolhas (erradas, talvez?) que fizeram diante de uma vida que não parece acariciá-los com positividade. O que fazer quando os sonhos são esmagados pelo próprio vício do cotidiano? À beira do desgaste, o casal não atenuam as próprias crises e discussões constantes - são brigas verbais, crises de choro, inúmeras fragilidades expostas que expressam o quão infelizes estão; desestruturados com o próprio destino que atua como um estrangulamento para a liberdade dos desejos. Quando o tormento de ambos parece não retroceder, eis que April entende que é necessária uma transformação - alternativa de captura da harmonia no seio conjugal, eixo há muito perdido. Tentando reverter o jogo - declara independência à inércia suburbana que os rodeava. Convence o marido a renovar a vida - abdicar do emprego que não sente prazer - e mudar-se para Paris, um lugar que Frank sempre imaginou poder viver melhor. A alternativa parece ideal, visto que é uma forma de transformação individual de cada um. Ela, deixaria de ser uma simples doméstica do lar e trabalhar; ele, dedicar-se aos estudos e descobrir o que gosta de fato. Porém, uma promoção que evidencia uma projeção profissional no âmbito profissional de Frank parece condenar todas essas possibilidades. Como ter esperanças?

Instigante o aspecto realístico da traição que caracteriza as motivações dos personagens; expõe as fragilidades humanas tangíveis. Frank não consegue se desvencilhar de suas insatisfações no casamento - então, cede às tentações ao aproximar-se de uma colega de trabalho com quem exerce sua masculinidade mais viril. Trai a esposa, foge de seus problemas pessoais, porém, ainda assim, sente-se angustiado por envolver-se com outra mulher. Qual razão para uma traição? É nítido que, ao enfrentar problemas constantes e que promovem desgastes no relacionamento do seu matrimônio com April, a libido do casal parece estar condenada. É aí que a carne torna-se mais apta às tentações, talvez por isso ele ceda aos casos extra-conjugais. Obviamente, o papel do homem da década de 50 representava uma afirmação machista - por isso, Frank atua como representante de um homem que, ainda que ame a esposa, não cede aos anseios de transar com outra mulher. Já April, tem uma representação diferente do conformismo feminino: não mascara sua realidade, quer fugir de suas frustrações a todo custo, a ponto de repudir até uma gravidez pelo simples fato dela ser um empecilho aos seus sonhos. E é aí que o casal sofre interferências dos vizinhos e amigos - como o desajustado e perturbado John (Michael Shannon), um homem que é considerado louco pela sociedade e, ainda que visivelmente paranóico e esquisito, consegue enxergar todas as fragilidades do casal Wheller. É o recurso usado no roteiro pra expor ao público como não deve se viver uma vida imersa em aparências, máscaras e infelicidades. Helen Givings (Kathy Bates), a mãe de John, contrapõe-se: é a representação da mulher conformada com uma vida imposta, aos rigores da sociedade e da felicidade falsificada. Enquanto John entende os anseios do casal Wheller, há personagens secundários que os condenam - típicas formulações da mentalidade dos anos 50, comunidades firmadas no preconceito e que reagem com inveja, indiferenças e julgamentos preciptados. O reflexo da realidade vivida na vizinhança é a da sociedade geral em si.

As atuações e o embate psicológico desenvolvido por DiCaprio e Winslet provocam fortes cenas, teor de emocionalidade. Ambos em momentos inspirados, ainda mais aos diálogos densos bastantes reflexivos. Ambos personificam pessoas que sentem-se ameaçadas pela perda da própria identidade, do medo de não realizarem os próprios sonhos. É um casal que vivenciam os anseios destroçados, uma vida condenada a vontades não realizadas. É o amargo retrato de um amor que se transforma, muitas vezes, num ódio incondicional. E, certamente, a maior força do filme também reside nas atuações dos dois em momentos de êxtase por conta de uma direção cuidadosa de Mendes. Interessante que a traição recorrente de Frank e também de April mostra como certas pessoas buscam o sexo como forma de redenção, de um prazer momentâneo que o livre da dor que se condiciona na vida - a ânsia pelo orgasmo, pelo sexo com outrem, se sustenta numa fugacidade que nada adianta. Ao fim, todos sentem-se perdidos pela traição que cometeu. Aos adúlteros, após o prazer, resta um senso de tristeza ainda maior. Será que todo casamento parece se predestinar aos sonhos transformados em ilusões? Com o tempo, o que deve prevalecer? A trilha de Thomas Newman atiça a atmosfera tensa do filme, além de revestir o teor dramático em muitas cenas. Fantástica fotografia de Roger Deakins, direção de arte e figurinos - mas, a direção de Mendes com o roteiro adaptado de Justin Haythe tornam a abordagem necessária, brilhante. É triste, até cruel. Um pequeno estudo sobre as tradições, costumes e futilidades das relações sociais - é um retrato sobre como é necessário o ser humano propor alternativas para a própria vida. Não deve se permitir aos maiores obstáculos, pois os sonhos devem ser persistidos até o fim. Um filme que mostra como é necessária a mudança quando não se há felicidade, se existe prazer de viver - a esperança não é uma chama que se apaga, jamais.

Revolutionary Road (EUA, 2008)
Direção de Sam Mendes
Roteiro de Justin Haythe, baseado no livro de Richard Yates
Com Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Michael Shannon, Kathy Bates

27 opinaram | apimente também!:

M. disse...

Oi Cristiano,

Eu assisti a esse filme e pensei que não ia gostar dele. Pois inicialmente eu achava muito parado. Mas não, a história nos envolve completamente. Há momentos dele que somos arrebatados pelas emoções das personagens.
A história do casal vivido no filme e o seu drama conjugal é mais acentuado principalmente pela época em que vivem. É um drama humano, comovente sem dúvida.

Seu texto como sempre acerta em cheio. Um grande abraço.

Luciano Braz disse...

Ótima pedida, vou ver no final de semana.

Abraço Cristiano.

bruno knott disse...

Gostei bastante desse filme... as atuações do Di Caprio e da Winslet são de fato excelentes...

E acho difícil que exista alguém melhor que o Deakins hj em dia!

Abraços.

Amanda Aouad disse...

Posso confessar uma coisa? Esperava muito mais desse filme. Mas, a dor da relação em frangalhos e atuação dos dois nos envolve. Diria que é um bom, mas não um ótimo filme.

bjs

Gustavo disse...

Os caras do Reverse Shot acharam o filme supercareta e falso, mas estou contigo nessa - talvez tenha sido a obra mais bem conseguida de Mendes desde a sua estreia.

Unknown disse...

A questão aqui certamente não é a atuação do casal protagonista, queestá excelentecomo de costume - embora uma dúzia torça o nariz paras as excepcionais performances de Kate e Dicaprio. O que faz de "Revolutionary Road" um filme mediano é a construção tradicionalista do diretor e do roteirista. É um filme que empolga em seus momentos mais dramáticos, mas no fim pode ser resumido da seguinte maneira: "mais do mesmo". A cena final, porém, é arrebatadora: conseguiram resumir toda a ilusão americana em cinco minutos de Kathy Bates.

Kamila disse...

Para mim, este filme é um derivado de "As Horas". Os dois personagens principais, claramente, se envolveram cedo em um casamento e em uma vida que os sufocou, que não os permitiu realizar aqueles planos que a maioria de nós possui antes de nos comprometermos com a responsabilidade de um casamento e da chegada dos filhos. Então, é isso! Acho a performance da Kate Winslet meio over e adoro o trabalho do Leo aqui!

renatocinema disse...

Concordo com seu comentário sobre esse ótimo filme. Sam Mendes sabe, como poucos, analisar a familia americana e suas hipocrisias. Eu adorei a produção e o trabalho da dupla principal do filme. Recomendo a todos que queiram descobrir como a vida pode ser amarga......se a escolha errada é feita.

pseudo-autor disse...

Incrivelmente ainda não vi esse. Vi O Leitor, que a Winslet fez na mesma época e acabei não conferindo esse e muita gente na blogosfera tem falado bem dele. Preciso alugá-lo urgente!

Cultura na web:
http://culturaexmachina.blogspot.com

Emmanuela disse...

Eu adoro como este filme desmascara as aparências e a falsa felicidade. Apresentando ao espectador a intensa melancolia quando se é atingido pelas armadilhas da ilusão de uma vida perfeita.

Além de sua qualidade dramática, o filme promove o retorno do casal referência do cinema contemporâneo. Desta vez de forma quase truculenta e mais diretamente conectado à realidade.

leo disse...

Iaê Cris.

Eu sou TOTALMENTE fã de tudo que acontece nesse filme,o tema é espetacular que sempre dá incríveis produções.
E o Sam Mendes novamente dando uma aula na direção,Kate Winslet tem uma das melhores atuações de sua BRILHANTE carreira e Leonardo Di Caprio também genial no filme.
Foi Apenas um Sonho é um dos meus filmes preferidos.

Abraços

cleber eldridge disse...

Apoiado nos excelentes DiCaprio e Winslet, Sam Mendes constrói um retrato perturbador, enquanto honesto, de um casal agrilhoado a uma vida que jamais desejou. Sonhos esfacelados e frustração existencial são o tom desse filme triste, porém poderoso. Sam Mendes confirma, que é um diretor excepcional.

Luis Galvão disse...

Assim como a Kamila, também acho parecido com As Horas. Atuações perfeitas de Winslet e Di Caprio. Sam Mendes em um ótimo momentos. Enfim, gostei do começo ao fim.

LuEs disse...

Acho que a maturidade dos atores é funamental para que a obra se mostre como uma pontecial exibição da destruição de um relacionamento. Não me restam dúvidas de que Foi Apenas um Sonho seja um filme que merece créditos pela sua forma delicada e às vezes bruta de expor o drama de um casal que se ama, mas que se acomodou numa vida que não evolui mais. Embora vivam na Rua da Revolução, eles estão estagnados e fracassando.

As interpretações dos dois atores são fantásticas. Tanto Winslet quanto DiCaprio se mostram atores muito bons e estão em perfeita sintonia. Sam Mendes soube como captar o melhor deles - soube como explorar não apenas os atores, mas também a história! Por isso, o filme tornou-se tão bom quanto é!

TH disse...

Daqueles filmes "pra dentro", que soam monótonos, mas as entrelinhas são lidas nos comportamentos e reações humanas dos protagonistas. Adorei!

Mayara Bastos disse...

O filme vale pela direção do Mendes, que se confirma, pelo menos para mim, como um diretor bem versátil, ele consegue transitar em vários gêneros sem dificuldades. E esse sufoco dos personagens acho que são méritos do trabalho dele. ;)

Talles Azigon disse...

eu tenho uma opinião que se confirma cada dia mais, tudo que o Leonardo di Caprio toca se transforma em porcaria, é impressionante como esse ator apesar de muito dedicado para mim deixa tudo sem graça, chato, defeituoso, ele consegue apagar até Scorsesse, mas enfim ^^ opinião é algo individual

Rita Contreiras disse...

Vc sempre profundo e lúcido nas suas análises!!Bjs

Fábio Henrique Carmo disse...

Considero apenas razoável, Cristiano. É um tanto arrastado e às vezes mais parece novela do que cinema. Comparando com o outro filme de Mendes sobre a vida das famílias nos subúrbios, o ótimo "Beleza Americana", este é bem inferior. Mas vale pela atuação dos protagonistas!

Priscilla Marfori... disse...

Assiti a esse filme e é extraordinário!
Algumas pessoas podem assisti-lo e dizer; Nossa que sedentarismo caótico de um casal! Mas não, não é caótico, é intrigante, no desenrolar do filme percebemos que um romance não se faz por juras de amor, mas por cumplicidade, Chega-se a pensar desse filme que os casais são perfeitos até certo ponto e depois se revelam, mas, mesmo que sem o amor do começo da relação eles conseguem se amar de outra maneira, mesmo com fome pela aventura vida ou desejo profissional sedento, tudo se julga perfeito se houver amor, o que faltou para os dois? Ficarem mais tempo com a boca fechada, falaram tanto tanto tanto, que o amor por um certo momento não aguentou e fugiu e foi aí que se perdeu quando tentou voltar!
Lindo filme, lição de vida, bela postagem!
Grande abraço.

O Neto do Herculano disse...

Um bom filme, que acabou sendo subestimado. Vale conferir.

Wally disse...

Chega a doer quando eles fazem seus planos para Paris (tentando alcançar essa tal felicidade necessária para o prazer de viver) e ver tal sonho ser destroçado, bem como o embalado "sonho americano" ruir diante deles. Esse filme me deixou muito. Mandes, poético como sempre nos seus planos, fotografia belíssima e técnica primorosa, e um elenco fenomenal. Apesar de DiCaprio estar excepcional, o filme é de Kate, extraordinária.

Larissa Araújo disse...

DiCaprio e Winslet, atuações maravilhosas, excelentes!

Mirella Machado disse...

Sua resenha está ótima, mesmo assim é meio difícil pra mim pois não é o tipo de filme que eu gostaria, acho que vou deixar passar pelo menso por enquanto. Bjosss Cris.

Renato Tavares Mayr disse...

Desse sõ assisti uma pequena parte, mas gostei muito do que vi... Podemos constatar que sou um cinéfilo da puta que pariu, né... Nos últimos 15 comentários, só falei "Não vi", "Tentarei ver"...

Wesley Moreira de Andrade disse...

Cristiano, aos poucos venho descobrindo com "apimentado" prazer seus textos. Já sou um fã dele. Parabéns!!!
Bem, vi Foi Apenas Um Sonho num momento complicado da minha vida e fiquei baqueado com o destino destes personagens tão infelzes e tão humanos, um filme emocionante e depressivo. Algumas questões pessoais foram superadas, mesmo assim tenho um certo receio de encarar este filme novamente, apesar da curiosidade de vê-lo sob a luz dos novos acontecimentos. Sam Mendes e elenco estão maravilhosos.
Abraço!

J. BRUNO disse...

"É quando o tédio torna-se opressor, a tristeza avassaladora e a euforia da passionalidade da paixão parece se perder quando a rotina se instala."
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Me lembrou a canção "Love Will tear us apart" do Joy Division, que fala sobre o mesmo tema...
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Confira depois a minha resenha do filme: http://sublimeirrealidade.blogspot.com/2011/07/foi-apenas-um-sonho.html

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