Trágica Atração?

Woody Allen sempre teve o cuidado em tratar a natureza humana com seus vícios e também virtudes, de maneira bem peculiar. Ofertando roteiros inteligentes, nos últimos anos, evocou uma maior intimidade sobre o lado sexual das motivações comportamentais da humanidade. O orgasmático Match Point é um filme que mantém seu característico olhar sobre a feminilidade, porém aqui há uma concepção sobre a esfera da virilidade masculina - é a noção do desejo de um homem, suas malícias e anseios. E o roteiro humanista aqui tem o verniz quente do senso da traição como premissa. É um conto de sedução, numa trama bastante intricada, onde a tônica carnal humana verbaliza seus sentidos. Neste trabalho, não há nos traços psicológicos nem um personagem alleniano - não existe aqui um alter-ego do diretor, nem as habituais crises cômicas. Retira-se as ironias e neuroses, insere um thriller-erótico instigante. Sai Nova York e o terreno narrativo centra-se no charme de Londres. A trama tensa foca na percepção de Chris Wilton (Jonathan Rhy-Meyers), um jovem ambicioso que almeja ascender socialmente. Para isso, haverá nele boas condutas morais? Ex-tenista, dá aulas num clube. É quando faz amizade com o rico empresário Tom Hewett (Matthew Goode) que a vida dele muda. Através do universo de Tom que o roteiro de Allen providencia a catarse do personagem protagonista - Chris ganha amizade e um forte laço de cumplicidade se sustenta quando passa a fazer parte do círculo de vida luxuosa de seu amigo. Quando conhece Chloe (Emily Mortimer), irmã de Tom, o destino canaliza melhor intimidade neste novo universo social. Chris entra na alta sociedade inglesa, passa a namorar Chloe e ganha um importante cargo na empresa de sua família. A aparente felicidade entra em conflito quando Chris conhece Nola (Scarlett Johansson), aspirante a atriz e namorada de Tom. O que fazer para conter o tesão que induz a pensamentos libidinosos? Woody Allen inspira-se no universo de Dostoyevski, o romance clássico "Crime e Castigo", para motivar a essência deste filme refinado que aborda os delírios do desejo. É um trabalho mais ardiloso e impressionista do diretor.

Qual razão para trair? Chris torna-se obcecado pela figura sexualizada de Nola, não consegue livrar-se dos desejos que manipula seus sentidos. A atmosfera crescente de tensão reveste o enredo, pois Woody Allen cria a sedução gradual entre Chris e Nola - um homem e uma mulher que não conseguem fugir do desespero do tesão; da aflição de um possuir o outro. E o perigo parece ser evidente quando ambos passam a sustentar uma tórrida relação sexual, numa teia de mentiras compulsivas. É a sexualidade da relação da traição, é o universo dos amantes sendo expostos. Chris e Nola fogem de suas vidas para vivenciar um sexo faminto, uma ilusão sem cuidados. Afinal, todo ser humano não pensa o quanto doloroso é trair alguém? Nenhuma traição é descoberta? Chris representa um homem disposto a manter uma vida de luxo, imerso numa teia de mentira do seu matrimônio, ainda que sinta uma paixão avassaladora pela amante. O universo dramático do filme aumenta quando a relação dos dois se intensifica. Afinal, tudo que ocorre na vida é acaso da sorte? A construção da infidelidade é o foco primordial estabelecido por Allen, ainda que ele também exponha reflexões sobre assuntos de amor, família e preconceito social. Num jogo instigante sobre rede de relacionamentos, desejos e encontros amorosos - o diálogo com a moralidade também é verbalizada.

E Allen mostra que, muitas vezes, um relacionamento iniciado em mentiras e segredos - nem sempre é duradouro. A infidelidade machuca? O perigo é nítido, assim como o senso de destruição. Inicialmente, Chris sustenta seu vício no sexo pela mulher que o induz à libertinagem. Consumido pelo desejo, só consegue pensar nos momentos pequenos que pode transar e sentir o corpo de Nola. Após a consumação do ato, permanece o sentimento? É o que coloca o diretor roteirista neste filme. E a densidade ganha formas trágicas quando Nola passa a sentir-se indisposta quando à indecisão de Chris - deveria ele abdicar de sua vida cômoda em luxo e aparências? Ou assumir esta relação que começou como um fogo de paixão sexual? Eis o lema da infidelidade - a relação, tanto para o conjugue, quanto para o amante, torna-se inviável. É necessário escolhas, há momentos que o sufoco é crescente, o martírio também. O mundo de luxúria ganha preocupação quando Chris reavalia seus atos, reflete seu mundo interior e exterior. Instaura-se nele um desespero diante da pressão de Nola em ser valorizada e assumida - ela não se conforma com sua condição de amante -, ao passo que o desequilíbrio se opera em sua vida. Chris e Nola atingem uma relação perigosa, num tormento permanente. A espiral de desentendimentos e discussões atiça e queima fogo no mundo de sexo, paixão e desejo.

Como ceder às tentações e manter uma relação estável, com boa ética? Allen conduz seus personagens com cuidado, o psicológico exposto através do tom intimista, delineando sensações e anseios bastante tangíveis. É interessante a proximidade, pois é um roteiro coerente com os sentidos humanos. A construção da ambientação dos diálogos, da maneira como a câmera percorre os atores em cena e até o uso da trilha sonora é detalhada - a impressão de que um pequeno universo tenso é desnudo aos olhos de quem observa. A atmosfera de adultério transforma o filme num drama energético trágico, é quando certas reviravoltas tomam proporções maiores. A concepção interpretativa de Jonathan Rhy-Meyers é contida, ele coloca uma aura misteriosa que seu personagem pede - um ator bastante talentoso. Porém, é Scarlett Johansson que aqui compõe uma personagem dotada de sensualidade e emoção, expressividade interpretativa. Um filme que pauta a condição da culpa, acima de tudo. Woody Allen conduz um estudo sobre como o ser humano pode ser dono de seu destino, mas a sorte pode abusar providenciando surpresas. E como o sexo provoca infortúnios ao homem, limitado aos desejos carnais que retiram o senso racional. A favor de retratar questões do existencialismo, das falhas e dúvidas inerentes a todos humanos, o diretor constrói aqui sua pequena obra-prima.

Match Point (Reino Unido, 2005)
Direção de Woody Allen
Roteiro de Woody Allen
Com Jonathan Rhys-Meyers, Scarlett Johansson, Emily Mortimer, Alexander Armstrong, Matthew Goode, Brian Cox

30 opinaram | apimente também!:

renatocinema disse...

Sempre tenho um pé atrás com Woody Allen, não sei o motivo, mas não sou fã do diretor.

De todos os seus trabalhos só apreciei muito: A Rosa Púrpura do Cairo, obra-prima, e gostei de Poucas e Boas.

Mas, esse contexto apresentado me instiga a conhecer um pouco mais a obra desse diretor que, na minha visão, é mais valorizado do que merecia.

O Neto do Herculano disse...

"Match-Point" nos mostra um Woody Allen de volta à grande forma, os ares ingleses lhe fizeram muito bem, embora o filme lembre, e muito, "Pacto Sinistro" de Hitchcock.

Kamila disse...

Acho que esse filme fala da sorte, é claro, mas também das escolhas e em como elas são determinantes para a nossa vida. O que ocorre com Chris é fruto completo das escolhas dele...

Sônia Brandão disse...

Um dia desses li alguma coisa sobre esse filme, que ainda não vi. Fiquei com vontade de ver, e agora, ao ver a sua apresentação minha vontade aumentou.

bjs

Jonathan Nunes disse...

Cristiano, esse é o meu filme favorito, acho que o Woody Allen tem filmes melhores que esse porém esse me capturou, adoro tudo no filme. Um ótimo trabalho do Woody.

Amanda Aouad disse...

Esse é, sem dúvidas, para mim o filme mais surpreendente de Woody Allen. Adoro.

Ótimo texto.

bjs

SexyMachine disse...

Esse filme eu adoroooooooooooooooo... Tenho ele...

Abração...

Unknown disse...

Um filme espetacular...gostei muito. Reviravoltas em filmes realmente da um tchan em um filme.

George Facundo disse...

Foi exatamente a informação da inspiração em crime e castigo do escritor russo que me fez ver esse filme e declaro que definitivamente não me arrependi...

O filme prende vc do começo ao fim, e de fato vc consegue descrever todas as minúncias comportamentais do filme com muita maestria...

Ju Fuzetto disse...

Amei esse filme!!!

Um beijo boa semana

Dan disse...

pra mim, o melhor filme dele!
:)

Rodrigo Mendes disse...

Gosto muito deste tipo de filme, em que o roteiro traz uma virada radical.

Nunca pensei que o Woody Allen faria um filme destes e em outra cidade...em outro continente..mas ele fez! Filmaço além de tudo, sexy!

O melhor "plot point" que já vi no cinema!

Abs.
Rodrigo

Anônimo disse...

Thanks. Very nice post. Your web site is very beautiful.

M. disse...

Oi Cristiano!!!

Sem dúvida Match point é um filme que surpreende. Preciso vê-lo novamente. Um abraço.

leo disse...

Esse eu ainda não assisti e pra falar a verdade não sei o motivo,gosto muitíssimo do Woody Allen e a dupla de atores me agrada bastante.
Abraços

LuEs disse...

Concordo totalmente com você.

Creio que essa obra de W. Allen seja uma das mais intimistas do diretor. Ele realmente consegue criar todo o clima necessário para que o espectador se sinta próximo das tensões sexuais e amorosas dos personagens. E o mais interessante é que não conseguimos ficar imparciais ao longo do filme: ora gostamos do personagem dele, ora o detestamos.

A química entre os atores parece muito boa, em momento algum desconfiei da veracidade de alguma cena. E creio que isso também esteja extremamente relacionado à capacidade do diretor, que é inquestionavelmente boa.

O máximo do filme, no entanto, é o roteiro, que é muito bem organizado e realmente é original. Parece não haver pontas soltas, tudo se fecha, a história se conclui de modo muito significativo e o enredo é cativante, porque - pelo menos na parte dos desejos sexuais e da adrenalina do adultério - o espectador se aproxima dos personagens. E penso que até mesmo quando ele pensa em matá-la o espectador compreende os seus motivos e lhe dá certa razão...

TH disse...

Woody Allen sempre foi um mestre nos desvaneios da natureza humana. Sempre foi ao fundo e tocou o dedo na ferida. E com efeito! :)

Gilberto Carlos disse...

Adoro os filmes de Woody Allen, mas esse ainda não assisti. Vou colocar na lista dos próximos que vou baixar...

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Caríssimo!

Muito obrigado pelos comentários e pela apreciação dos textos. Isso me deixou muito feliz.

Li uns 10 textos teus, e estou muito impressionado. É interessantíssimo ver um texto com uma abordagem da sua área - algo que eu acho fascinante em crítica...

Também estou seguindo o seu blog. Gostaria de propor parcerias entre as nossas páginas. Topa fazer?

A proposta é a indicação de nossas páginas na coluna de sites indicados. Em todo caso, já estou seguindo o seu site, ok?

Abração!

Nelson L. Rodrigues disse...

Já estou seguindo, ótimo post!!!

AnnaStesia disse...

Sou fã de Woody desde os 12 anos (sério!) e esse é um dos seus melhores filmes.

Elton Telles disse...

Woddy Allen já disse que este - junto com "A Rosa Púrpura do Cairo" - é o filme favorito de sua própria filmografia. Não me arrisco a fazer tal afirmação, já que admiro o trabalho desse ator/diretor com avidez, mas fato é que "Match Point", como vc bem pontua, é um excelente filme, uma pequena obra-prima. Eu adorei, foi uma grata surpresa e, na época, uma guinada na carreira do diretor que andava entregando apenas projetos regulares.

Entendi o seu apreço pelo filme, Cris, mas não concordo em considerá-lo um "thriller erótico". Não sei se é porque a definição desses filmes remetem àquela construção pobre e desfalcada de história, mas prefiro a outra expresssão que tu usou: "conto de sedução". É isso o que o filme é. Fantástico e poderosos em sua "simplicidade" provocante. E Woody Allen, como nos seus melhores filmes, se revela um sacana irrecuperável. Hijo de puta! xD


abração!

Unknown disse...

Quando assistimos a "Match Point", sem a base formada por seu antecessor, o magnânimo "Um Lugar ao Sol", a tendência é que nos apaixonemos incondicionalmente pelo mesmo. É o melhor filme de Allen desde "Interiores", acredito - e conseguiu adaptar a obra clássica de George Stevens sem cometer erros, e mais: dando nova roupagem às situações propostas pelo filme clássico.
O desfecho é mais que empolgante, há sim uma tensão sexual fabulosa durante todo o primeiro ato, que se perde depois, infelizmente, mas não chega a comprometer o resultado. Mortimer e Goode estão divinos, tranquilamente os melhores nomes do longa.

Robson Saldanha disse...

Adoro Allen mas nunca vi esse filme... preciso consertar isso pra ontem!

Fábio Henrique Carmo disse...

O filme tem elementos de "Um Lugar ao Sol", obra-prima de George Stevens, mas é menos trágico. Ademais, Allen já tinha abordado a temática "Crime e Castigo" com o seu "Crimes e Pecados". Mas "Match Point" também é um bom filme, um dos melhores e Allen nos últimos anos. Grande abraço!

Wally disse...

Obra-prima absoluta! Morro de paixão por esse filme. O roteiro, a sofisticação da direção, o uso da música, as atuações... isso sem contar o subtexto "Crime e Castigo" delicioso.

Gustavo disse...

O que faríamos nós no lugar do personagem de Rhys-Meyers? Teorizar é fácil, mas na prática...

Nuno Barroso disse...

Filme muito bom! :)

Wallace Andrioli Guedes disse...

Apesar de não ser uma adaptação de CRIME E CASTIGO, o diálogo do Allen com o universo de Dostoievski é claro e, como não poderia deixar de ser, enriquecedor. Há aqui uma sexualização da trama, que não há no livro, mas a questão da culpa é deixada de lado (algo que apareceria em O SONHO DE CASSANDRA). Aliás, quando Allen entra nesse universo de crimes, costuma fazer grandes filmes, como CRIMES E PECADOS... MATCH POINT é o melhor trabalho do diretor nesta década.

J. BRUNO disse...

Ótima análise, teus textos são excelentes, já deve ter mais de uma hora que estou aqui passeando deslumbrado pelo teu blog... Sou suspeito para falar deste filme, pois considero Woody Allen um gênio (apesar de alguns deslizes durante a carreira), não é atoa que este é o filme favorito dele até hoje... Estou curiosos para assistir Meia Noite em Paris...

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