Violência Sexual

Como fazer com que não prevaleça a impunidade no sistema judicial? O filme Acusados provocou polêmica quando lançado no final da década de 1980, por promover uma importante discussão sobre os ditames da lei perante uma vítima de estupro. É um emocional recorte de uma problemática real. Dirigido por Jonathan Kaplan, a película teve o roteiro baseado numa dolorosa história real — um caso de estupro ocorrido em março de 1983 no estado de Massachusetts. A trama mostra o drama vivido por Sarah Tobias (Jodie Foster), estuprada por 3 homens em um bar, na presença de outros que incentivaram o ato de agressividade. Ao ver que seus agressores obtiveram penas leves, Sarah luta desesperada por uma punição adequada para estes, ao lado da defensora pública Kathryn Murphy (Kelly McGillis). Além do desejo de justiça imediata, ambas querem também a condenação dos incitadores da violência sexual que contribuíram para o acontecimento do estupro. Como acordar um sistema penal que parece tão arbitrário e injusto? O filme recobre uma realidade que ainda se mantém presente: vítimas de violência sexual não conseguem condenar os agressores. O roteiro polemiza esse senso, inclusive ao colocar a condição de Sarah dúbia, como ocorre em muitos casos, onde a vítima é suspeita em seu próprio caso. Quais são os limites da justiça? O da responsabilidade social?

O filme alerta que nos Estados Unidos, seis mulheres são estupradas a cada hora. E pelo menos quatro delas são atacadas por mais de um homem. Nada justifica crime tão imperdoável, irracionalmente humano. E o esforço do roteiro trata justamente de desvendar esse sistema penal que acaba por manter impune pessoas que cometem crimes deste sentido. Sarah representa uma vítima sexual — além de vivenciar toda a dor do estupro, tem sua moral questionada e colocada à prova. O trâmite processual não é fácil, ainda mais que, freqüentemente, vítimas de agressões sexuais são questionadas de todas as formas nos Tribunais. E o roteiro demonstra essa vivência dolorosa de Sarah enquanto vítima; além de seu anseio de punir as pessoas que a macularam. A única disposta a entender um pouco de seu universo traumático é Kathryn, com quem concebe um forte elo de amizade e compartilhamento de confidências. O diretor Kaplan divide o filme em momentos onde compreendemos a personalidade de Sarah, seu trauma insuperável e sua maneira de lidar com os problemas. A superação é um difícil caminho a ser percorrido por vítimas de agressões sexuais. A outra linha narrativa mostra o julgamento que segue, enquanto a promotora tenta provar que, independentemente do fato de que a vítima estava flertando com os acusados, eles deveriam ser condenados.

O tom realista do roteiro evidencia a sexualidade forte na personagem Sarah — é exatamente essa dualidade que ela exerce, faz com que a dúvida seja consequente. Será que ela contribuiu de alguma forma para a violência sexual? O que esconde perante a lei? A representação feminina de Sarah é nítida: altamente sexualizada, rebelde e impulsiva, exerce um comportamento transgressor. Típica mulher de classe baixa que trabalha como garçonete, é onde o desrespeito parece prevalecer, num ambiente onde tem que conviver com vários homens machistas. Sarah tem sua reputação questionada, inclusive pela sua advogada que, às vezes, parece duvidar de que ela fora realmente vítima de uma agressão sexual. Será que a moça usou de sua feminilidade libidinosa para conseguir algo? O que houve naquela noite, afinal? Sarah não se conforma com essas dúvidas e tenta atenuar sua aparência física — corta os cabelos, muda a forma de se vestir — numa tentativa de adquirir respeito da sociedade que tanto julga. E o trauma faz com que a vítima não tenha vontade de transar mais, tendo que se recuperar internamente de todas suas dores. Eis a polêmica proposta pelo filme: Só por ser sensual a mulher deve ser estuprada? O absurdo é questionado por Sarah, mas serve de alerta a todos.

A incessante cena completa — terrivelmente visceral — do estupro só é revelada perto do final, durante o julgamento dos três homens que incitaram a agressão. É justamente a punição a casos de estupro que a premissa do roteiro se baseia. Tanto Sarah quanto a sua advogada querem a condenação dos estupradores além dos incentivadores. A composição de Jodie Foster é determinante para o tom realista do filme, visto que ela lida com dores reais tão densas que é difícil não evidenciar a interpretação emocional nesses momentos (a atriz levou seu primeiro Oscar por essa personificação dolorosa). Kelly McGillis é o contraponto, atua brilhantemente como uma advogada determinada. Instigante o posicionamento polêmico do filme — ainda que sob efeito do álcool, mesmo que tenha flertado com algum dos homens, Sarah não deveria ser punida por isso. Afinal, o que caracteriza o estupro é justamente alguém ser forçado a manter relações sexuais; é isso que reside o argumento do filme. Ela não quis fazer sexo com os homens, foi coagida a isso, ainda que tenha dançado anteriormente com um e ter trocado beijos. Um trabalho que serve de alerta, denúncia e reflexão para uma sociedade que não condena. E nem o roteiro, nem a direção atenta de Jonathan Kaplan, acentua o tom melodramático; não há exageros. As cenas de tribunal, bem como a dor da vítima Sarah, conservam traços reais em seus diálogos, na sua maneira de se expor. Um filme que estuda a tecnicalidade da lei, das barreiras do preconceito, da forma de assegurar a toda mulher o direito do seu corpo.

The Acussed (1988, EUA)
Direção de Jonathan Kaplan
Roteiro de Tom Topor
Com Jodie Foster, Kelly McGillis, Bernie Coulson, Leo Rossi

25 opinaram | apimente também!:

renatocinema disse...

Adorei o filme. Fiquei espantando ao saber que era baseado em história real. Assisti a tantos anos que não sabia disso. Filmaço obrigatório.

Belo texto, como sempre.

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Jodie Foster!

Houve um tempo em que eu não era muito fã dela. Mas foi depois de ver esse filme, mudei total a minha opinião.

Mais um bom texto! O seu fôlego para esse tipo de filme é quente, apimentado (como deveria ser), e muito global (característica rara no meio crítico, e você com certeza sabe disso).

Parabéns, amigão!

Abraço

Gabriel Neves disse...

Jodie Foster, já é o que me chamou a atenção quando vi sua postagem. Mas gostei da temática do filme, se há uma coisa que me desperta interessa é a crítica à religião e à lei atual. Tua frase "quais são os limites da justiça?" me convenceu, se tivesse lido teu texto há umas 4 horas, teria alugado o filme hoje :/
Abraços.

Amanda Aouad disse...

A história chama a atenção mesmo e com seu texto fica ainda mais forte. Vou procurar.

bjs

Foose disse...

Kaplan conduziu muito bem este filme. Deixa explícito o quanto a mulher é frágil e indefesa na nossa sociedade machísta. A pertinácia e audácia da promotora é retórica cinematográfica, mas no dia em que for realidade, aí sim, teremos um sociedade mais justa. Esse longa também marca o nascimento de uma grande atriz, que com uma belíssima interpretação mostrava que nem só de rostinhos bonitos vivia Hollywood... mas de belas interpretações!

Belíssimo texto amigo... intenso e delicioso de ler!!! parabéns!

Um grande abraço...

Unknown disse...

O filme foi forte pra época. Acho que envelheceu um pouco. Hoje, vale mais pela atuação corajosa de Jodie Foster. Aliás, onde estão os bons papéis para Jodie Foster? Será que só entregam os roteiros para Meryl Streep??

Abs!

Wallace Andrioli Guedes disse...

Não gosto muito desse filme. Tenho uma vaga recordação de tê-lo assistido muito novo, e ter ficado bastante impressionado com a sequência do estupro. Já mais velho, resolvi finalmente assistir, e saí decepcionado: apesar da Jodie excelente, como quase sempre, acho o filme um drama jurídico bem tradicional, quadrado... agora, a cena do estupro é mesmo, muito forte, e a discussão proposta pelo filme, importante.

Alluc disse...

Ainda não assisti, mas pelo seu texto, parece ser um filme que presa os detalhes e é dirigido com cuidado e carinho.
O tema serve de alerta e é uma ótima deixa para discussões quentes e fervorosas!
Afinal de contas cada um tem uma opinião sobre condenar ou não. E claro o que revolta é que quando a mulher provoca o homem, existem pessoas que acreditam que mesmo que tenha acontecido um estupro, a mulher é a responsável pois o homem não pode controlar seus instintos sexuais!

Se o homem não sabe controlar seus instintos, então que ele seja preso em uma jaula, por não passar de um animal!

Lara Santos disse...

Amo a Jodie Foster!

As atuações dela são sempre impecaveis e, nesse filme não é diferente!


blog: http://aqueelas-historias.blogspot.com/

Ricardo Morgan disse...

Tem tanto tempo que vi esse filme que eu tenho que vê-lo novamente. Mas é um filmaço e bastante perturbador, tanto pelos conceitos do sistema jurídico e pelo que você mesmo disse, o 'direito do corpo da mulher'!

Há uma coisa curiosa. A Jodie Foster tem um bom passado 'erótico' no cinema interessante. Ela já foi a garotinha prostituta em "Taxi Driver", a estuprada em "Acusados" e participou do 'erotismo psico' em "Silêncio dos Inocentes".

Boa e sempre curiosa análise! Abraços

Mirella Machado disse...

Agora fiquei curiosa pra saber o que a Sarah fez na tal noite, de certa forma se ela deu em cima praticamente todos irião pensar a mesma coisa: "ela pediu pra ser estuprada" pq se o filme retrata a sociedade como ela é, sempre será assim com esse pensamento machista de que o homem não está errado e as mulheres é que devem ter cuidados pra que isso não aconteça. Fiquei curiosa pelo filme mesmo, sua resenha está ótima. Abarços Cris.

Jonathan Nunes disse...

A Judie Foster está lindamente sedutora, não conhecia esse filme, mais um que irei baixar para ver como sua indicação. Ótimo texto. Abs.

Kamila disse...

O filme era muito forte na época dele, mas acho que perdeu boa parte de seu impacto. O que me revolta no filme, no entanto, é a tentativa de mostrar como se a personagem da Jodie Foster fosse culpada do estupro que cometeu por ser uma mulher provocante. Isso é covardia!!

Willian Lins disse...

nunca assisti!
mais um pra lista...

beijo, chato!

História é Pop! disse...

Se hoje o tema é considerado polêmico, imagina para década de 80.
Esta questão da denuncia de estupro é algo complicada para mulher e pelo que pude ler o filme deixa patente o quanto a mulher é frágil e indefesa na nossa sociedade machista.
Pelo que andei lendo sobre o filme interpretação de Jodie Foster é destaque...
Boa dica Cris!!!

Paulo Vitor Cruz, ele mesmo disse...

como diria um amigo meu apaixonado por cinema: "denso, densíssimo..."

abraço grande.

TH disse...

Eis outro com a Jodie que eu sempre quis ver (sou fissurado por ela!)

pseudo-autor disse...

Eu sou um admirador notório desse filme! Volta e meia cruzo com ele em algum canal de TV e reassisto. Sinto falta da Jodie Foster dessa época.

Cultura na web:
http://culturaexmachina.blogspot.com

Robson Saldanha disse...

são tantos so filmes de Jodie Foster que eu gostaria de conferir... vou anotar esse aqui.

Nelson L. Rodrigues disse...

Para mim J.Foster é uma das melhores atrizes da contemporaneidade. Excelente post.

LuEs disse...

Não é necessária mais do que a presença de Jodie Foster para me motivar a ver o filme.

A somar, há esse intenso enredo, no qual se debate um tema delicadíssimo e necessário para um questionamento social.

Infelizmente, ainda não vi o filme, mas quero muito vê-lo há algum tempo. Como agora terei uma disponibilidade um pouco maior, talvez seja possível vê-lo.

Antes mesmo de ver o filme, já começo a buscar respostas para às propostas apresentadas pelo filme e pela sua excelente (e instigante) resenha.

bruno knott disse...

Não conhecia esse filme ainda e consequentemente não sabia que foi com ele que a Jodie Foster começou a ganhar reconhecimento.

Lendo o texto já dá pra perceber a seriedade do assunto e me causa indignação esse tipo de coisa, a vítima ser considerada culpada por alguns.

Sem dúvida quero conferir.

Abraços!!!

Tania regina Contreiras disse...

Passando, lendo e me envolvendo com o seu texto, sempre muito bom!
Beijos,

Mayara Bastos disse...

Ainda não pude conferir este filme, ainda mais com uma premissa bastante presente atualmente. À conferir.

Beijos! ;)

Anônimo disse...

Nunca tinha ouvido falar desse filme, mas seu ótimo texto me deu vontade de assistir, por ser de um assunto que gosto quando bem explorado... E a Jodie Foster é sensacional sempre...

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