Dança pela fama?

Além da grande sacada de ter vigorado a fórmula musical, o charme de Chicago reside no seu apelo sexual feminino aliado ao vibrante exercício teatral que favorece um resultado poderoso estético. Dirigido com apuro cuidado de Rob Marshall, efetivamente contagiado pela influência de Bod Fosse, o filme é um senso mordaz, agressivo, cínico e voluptuoso sobre a espetacularização midiática social. O roteiro febril de Bill Condon escancara a hipocrisia da sociedade que insiste em promover assassinos que se glorificam na mídia como heróis; prostitutas que são santificadas pelo showbiz; o arbitrário sistema penal que não cumpre com rigores morais, nem éticos, portanto parte de uma rede corrupta que se vende à mediocridade; o sensacionalismo da imprensa que executa/manipula a indústria de entretenimento. A fina ironia do roteiro consegue desmascarar as mazelas sociais, a malícia e o desatino social. Mas é a força da sensualidade que viabiliza um êxtase total — sensorial e visual —, pois este é um musical que evoca o autêntico jazz e tango que são marcas sonoras da sensualidade musical. A trama feminina que disserta a inveja, ambição, a farsa imoderada de duas criminosas que se antagonizam dentro do presídio. Roxie Hart (Renée Zellweger), a loira fatal que mata o amante Fred Casely, homem que havia cometido o falso perjúrio de ajudá-la na sua ambição em ser estrela. Dançar, cantar, ser desejada por todos — são idealizações da jovem. Velma Kelly, a libertina estrela de Vaudeville, mata a própria irmã ao flagrá-la na cama com seu namorado. Ambas mulheres, no universo carcerário, em meio às rivalidades, precisam obter a chama calorosa dos holofotes da Broadway para reinar. Sob os cuidados da carcereira lésbica Mama Morton (Queen Latifah), Roxie descobre o lendário advogado Billy Flynn (Richard Gere) — mercenário, astuto, másculo desejado por todas as mulheres, típico mentor que transforma criminosos em ídolos num jogo onde a dualidade sempre está presente.

Ao misturar os planos do sonho com realidade, ótica de Roxie Hart, o roteiro evoca uma dinamicidade completa na esfera musical e narrativa. Ela imagina/idealiza sua vida como um palco de dança. Por conta da montagem ágil, exuberância nos figurinos, Direção de Arte e contornos fotográficos intrépidos — é impossível não contagiar-se com o ritmo excessivo do filme. A forte carga cínica é externada constantemente, visto que os personagens são dúbios e maliciosos. A rivalidade das duas personagens femininas concebe uma mistura de humor, drama e emoção que proporciona inúmeras seqüências admiráveis. Tecnicamente esplêndido, o cuidado de Rob Marshall é perceptível também nas sutilezas, no sarcasmo que corrompe e denuncia o caráter de cada personagem seu em cena. Instigante também as melódicas músicas que compõe a esfera sonora, todas com conotações sobre paixão, sexo e passionalidade dos personagens. Ademais, criticam também o sensacionalismo e o fervor midiático contextual da época.

A força sexual dos personagens expõe todo o senso provocativo do filme. A caracterização dúbia, propensa à luxúria e desgarrada aos valores de fidelidade são traços perceptíveis da personagem principal, Roxie. A jovem que ambiciona ser uma vedete, não se prende aos princípios éticos. Infiel ao marido, não se importa em macular seu casamento com interferências extra-conjugais. Usada pelo amante apenas como objeto sexual, o mata logo depois. Roxie assume sua malícia também na prisão. No encalço da fama, deseja provar uma falsa inocência com o advogado Billy Flynn por quem nutre uma relação oportunista e também prevalece uma sutil tensão sexual. Já Velma Kelly é a representante da feminilidade libidinosa; femme-fatale, arrogante e decidida. O roteiro exibe as personalidades, os comportamentos e as motivações de duas mulheres tão rivais; mas próximas na expressão de sensualidade e no desejo de serem celebridades. No jogo sádico da trilha da fama; na sede pelo sucesso; no dúbio anseio pelo showbiz. Até as assassinas presas, da ala onde Roxie e Velma se digladiam, recebem uma expressão comportamental de libidinagem — “Cell Block Tango” é uma seqüência que retrata muito bem essa atmosfera dessas mulheres tão ardilosas, um momento musical antológico.

A combinação de luzes, cenários e vestimentas que priorizam elementos de cores avermelhadas são evidentes — simbolizam a atmosfera sensual que o musical expressa. Vermelho é a cor da paixão, da luxúria, do desejo. E caminha com a espirituosa coreografia que bebe da fonte de inspiração sexual de Bob Fosse. Instigante, provocador e selvagem são percepções da composição inspirada de Catherine Zeta-Jones — modulação de voz, talento pra dança e canto, posturas em cena, dignificam o filme. A atriz transparece um poder imagético hipnótico, é impossível desviar a atenção quando ela está em cena. Lasciva, elétrica, batom vermelho vívido e um carisma feminino delicioso de se ver! Decerto, os grandes momentos musicais do filme são obtidos com a sua Velma Kelly — “I Can’t Do It Alone”, em especial, seqüencia seu talento artístico e justifica o Oscar de Atriz Coadjuvante conquistado. Tanto Renée Zellweger quanto Richard Gere não comprometem o desenvolvimento do filme, ainda que sejam ofuscado pelo frisson erótico de Zeta-Jones. Ao fim, é notório como o tango pode mexer com os instintos da sexualidade apenas pelo ritmo provocante, e todo aquele jazz...

Chicago (EUA, 2002)
Direção de Rob Marshall
Roteiro de Bill Condon
Com Renée Zellweger, Richard Gere, Catherine Zeta-Jones, Queen Latifah, John C. Reilly

30 opinaram | apimente também!:

ItaloDutra disse...

Ótima tradução do clima de Chicago! Só não concordo em dizer que a Renée Zellweger fica ofuscada pela Zeta-Jones. Mesmo concordando q a energia da última é algo difícil de bater no filme, a Roxie de Renée é deliciosa em sua ingenuidade e malicia.

Ricardo Morgan disse...

Até que enfimmmm!!!!! Uma semana depois... kkkkk Cara, perfeita análise. É como vc disse: "...vibrante exercício teatral que favorece um poderoso resultado estético". Como disse na minha crítica, "Chicago" só é o que é graças aos números musicais. Se você tirar esses 'números musicais', o filme é só mais um que retrata a corruptível cidade do título. Prefiro "Moulin Rouge"! hehe Abraços

Anônimo disse...

Esta foi a analise mais profunda do roteiro de "Chicago" que já li. Incrível! Me fez lembrar vários momentos do filme que havia me esquecido como a causa de Renee acabar no xadrez.
Parabéns, Cris! Esta vc estava mais inspirado do que o habitual.
Abraços

Marcus Cramer disse...

O Cell Block Tango é inesquecível, pra mim o melhor momento do filme, reunindo cinismo e sensualidade.

Zeta-Jones é a melhor em cena, tanto na dança, quanto na atuação. Filmaço!

José Francisco disse...

Zeta-Jones exala sexo somente por existir. Olhar para ela é pensar em sexo. No Oscar em que ela ganhou a estatueta por 'Chicago', estava grávida. E sim, ela exalava sexo. Ela cumpre bem sua função no filme. Pena que Renee não tenha o mesmo furor. Isso faz com que não compremos muito o êxtase sensual da personagem Roxie Hart. Parabéns por enxergar sexo em tudo! Que delícia!

Rodrigo disse...

O filme não é pra mim uma maravilha, e não tenho medo de admitir que dormi na primeira vez que vi (ou tentei ver). Mas, cara, falo e repito, você deve ser um melhores escritores de crítica cinematográfica da atualidade. Uma de suas obra-primas. Continue assim, e foda-se quem não gosta do seu estilo. Pois, afinal, é só seu. Abraços.

Thiago Quintella de Mattos disse...

Este filme é uma covardia com meus sentimentos! Nicole e Cathrine...

Clenio disse...

"Chicago" é cínico, debochado, sensual e irônico como poucos filmes são. É um musical no sentido literal da palavra, uma vez que até mesmo seus diálogos tem uma fluência sonora diferenciada.
A reconstituição de época caprichada, a fotografia deslumbrante e a trilha sonora com canções que grudam na memória não poderiam ser melhores.
Catherine Zeta-Jones rouba o show desacaradamente, mas Renee Zelwegger e Queen Latifah também estão excelentes. Só mesmo Richard Gere não consegue me convencer...

E eu adoro a sequência da entrevista coletiva, quando Roxie se imagina como uma boneca nas mãos do ventríloquo Billy Flynn. Genial!

Abraços
Clênio
www.lennysmind.blogspot.com
www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com

Gabriel Neves disse...

Esse filme é uma delícia mesmo. Me apaixonei assim que a cena final acabou, de forma deslumbrante, com Zeta-Jones e uma Zellweger simpática preenchendo a tela de alegria. Impossível não se apaixonar pela atitude das prisioneiras em cena ou pela incessante ambição de Roxie. E ótimo texto, hein? Definiu bem o filme e as personagens.
Abraços.

renatocinema disse...

Adoro Chicago. Um filme que amo de paixão. Ao lado de Moulin Rouge meus prediletos no gênero.

A construção de personagens tão dúbios e maliciosos é o ponto forte do filme, em minha visão. Mesmo não sendo grande fã de Renée Zellweger.

Belo filme e ótimo comentário.

Kamila disse...

Este filme é sobre o fascínio do showbiz em certas pessoas. É sobre a atração que essa vida causa em certas pessoas. "Chicago" também é sobre o preço que pagamos pelas nossas escolhas, por aquilo que decidimos ser e nos tornar. Acho uma obra sensacional, um musical à moda antiga. Belo! :)

Ccine disse...

O que falar de um texto desses??
Mais uma bela visão, dessa vez "Chigado" esse musical sensacional.
Eu gosto tanto dele que até comprei em Blu-ray, mas ainda não consegui assisti. Mas depois desse texto aumentou minha vontade.
De qualquer forma e mais uma vez PARABÉNS pela perfeita resenha.

Adecio Moreira Jr. disse...

Todo mundo paga pau pra Zeta Jones, Renée e até pra Queen Latifah, mas esquecem que o melhor em cena é John C. Reilly. Fantástico!

Amanda Aouad disse...

É, Cris, dessa vez vamos discordar, apesar de seu texto estar ótimo como sempre. Apesar de gostar de musicais, Chigaco não me encanta. Gosto da história da peça, da forma como ele utiliza o cênico para justificar as inserções musicais, mas, no geral, acho que o filme perde força. Apenas, Catherine Zeta-Jones está ótima.

bjs

Fernando Fonseca disse...

Chicago é um musical no estilo Broadway, enquanto Moulin Rouge é MTV. A tensão sexo-fama move Chicago de forma explícita e provocante. Sua maior qualidade.

Renée tem sua melhor atuação na carreira. Catherine detona e fez por merecer o Oscar. Richard está no automático e só se sobressai na cena de ventríloquo. Reilly e a cena de Mr. Cellophane tem o melhor momento do filme.

Mas, eu desde que vi a primeira vez, no cinema, não senti tanta força e ele parece ficar mais raso a cada revisitada. E, Cell Block Tango nunca chegará aos pés do Tango de Roxanne.

Apesar de achar que Moulin Rouge e Chicago são os melhores exemplares dos musicais dos anos 2000. Mas, nem de longe são os melhores do gênero, que ainda guarda suas pérolas na época dourada de Hollywood, décadas atrás.

Alan Raspante disse...

Gosto batante, tanto que tenho o DVD em minha coleção. Gosto da ironia e desta busca pela fama "louca" que os personagens tem. Porém, não sei se entraria em um Top 10 por exemplo. Mas é fato que e bem feito, contagiante... um grande musical!

abs.

Rodrigo Mendes disse...

Se prestarmos mais atenção...bem lá no fundo CHICAGO é a cara do Apimentário. Em número e grau, rs!

O filme é maravilhoso com todo aquele jazz, aquele tango. Rob Marshall pode não ter sido um diretor de primeira linha ainda nesta estréia no cinema (melhorou com Memórias de Uma Gueixa - errou feio em NINE) mas como um expert no teatro e na dança, soube muito bem deixar vivo o espírito carnal do maior coreógrafo do cinema: Bob Fosse!

Ao contrário de muitos, acho esta fita uma obra-prima que tem um roteiro irregular, mas que nem por isso atrapalha.

Espero que você poste All That Jazz - O Show Deve Continuar, este sim, certeza merece estar aqui.

Abs.
RODRIGO

Mirella Machado disse...

Como eu já te disse é um filme que não me agrada, mas há quem adore pelo o que vi. Pra mim ainda faltou um glamour de musical que todos eles tem e Nine, infelizmente ficou tão parecido quanto. Mas foi uma bela crítica, como sempre, talvez eu reveja alguns conceitos quando tiver uma próxima oportunidade de ver. Ah, e prefiro Moulin Rouge +1.

Roseana Marinho disse...

And all that jazz! Um dos meus filmes favoritos finalmente aparece por aqui. Adoro o tom meio debochado - mas sem excessos - desse filme. A história tem ritmo e fluidez e realmente encanta. Adoro Velma Kelly. Catherine Zeta-Jones fez uma coisa que acho imprescindível para um bom desempenho em um papel: não atuou só com as expressões faciais, mas levou isso para um nível absurdamente mais alto, como você disse, mostrando a personagem na entonação da voz, a postura, até o jeito de andar, quase como uma pantera cercando sua presa. Li em algum lugar que a ideia do cabelo chanel com franjinha, tão típico dos anos 1920, foi ideia dela! Simplesmente sensacional. E não posso deixar de dizer como AMO o Cell Block Tango!

Diego S. Lima disse...

Já tinha dito em outro lugar, e ratifico aqui, Chicago é dos melhores musicais que existe, logicamente tem melhores.
Até Richard Gere de quem não sou muito fã (eufemismo) está bem. A forma com que Marshall implementa a realidade aos musicais é genial, pode ter sido apenas um flash de brilhantismo dele, mas é de se bater palmas!

Consequentemente concordo em genero, numero e grau (acho que é assim Rodrigo, rsrs) sobre o que acabei de ler no texto do Cris, um dos melhores sobre o filme que eu já li (se não o melhor) diga-se de passagem!!!

Hugo disse...

Apesar de todas as críticas positivas, ainda não assisti.

Musical não está entre meus gêneros preferidos e preciso acabo sempre deixando para depois.

Abraço

Sandra Cristina de Carvalho disse...

Um filme, cujo roteiro medíocre, serve-se de uma teatralidade escancarada e imoderada, a fim de promover o que realmente expressa sua sinopse: Sensualidade e luxúria, proporcionando a Renée Zellweger e a Catherine Zeta-Jones, a possibilidade de demonstrarem seus talentos pra dança e canto. Zeta, por exemplo, não há como negar todo seu potencial artístico. Já o quase veterano Richard Gere, até hoje não entendi a escolha para tal personagem, já que ele , não tem o menor talento para canto ( famosa voz de taquara rachada ), e sua ausência não nos lembraria do quanto o filme é chato. Se a intensão era mostrar o sex-appeal das moçoilas, feito. E Daí?

Joyce Martins disse...

Oh, é uma honra tê-lo em meu simples blog.

Agradeço de coração.

Meus parabéns, sempre,

blog maravilhoso sobre cinema,

amo este lugar!

Flávio disse...

Oi Cristiano. Parabéns, por mais uma ótima crítica. Pra mim uma das cenas mais memoráveis do cinema, é aquela onde o advogado - interpretado pelo Richard Gere , é apresentado como um fantocheiro, aquele número musical é extraordinário.

Otavio Almeida disse...

Zeta-Jones tem as pernas mais bonitas do cinema desde Cyd Charisse, em "Cantando na Chuva". É só o que tenho a dizer sobre esse filme.

Abs!

Fábio Henrique Carmo disse...

Chicago é bom longa, mas não merecia o Oscar de melhor filme (teria ficado melhor nas mãos de "O Pianista", com certeza). Zeta-Jones arrasa, tanto pela atuação quanto pela beleza, mas eu não tenho nem nunca tive simpatia por Zellweger,apenas uma careteira de plantão...

Edson Cacimiro disse...

Não canso de ver esse filme, edição perfeita, vale ressaltar que entre as estrelas do filme estão também os maiores nomes da dança, bailarinos consagrados no show bussines americano.
JAZZ!!

Anônimo disse...

If You Can't Be Famous, be Infamous...

GÊNIAL!

G-Ê-N-I-AAAAAAA-LLL!!!

Adoro esse filme!

Wallace Andrioli Guedes disse...

É realmente um musical carregado de sensualidade e malícia. E, claro, concordo contigo quanto à força da presença de Zeta-Jones, de fato a melhor coisa do filme.
Penso que um dos grandes acertos de CHICAGO está em sua narrativa econômica, que se afasta de uma tradição de musicais longos e enfadonhos. A opção por inserir os números em momentos de sonhos/delírios ou em apresentações musicais intrínsecas à narrativa também ajuda, à meu ver.
Enfim, acho um filme delicioso, mas que não merecia o Oscar principal simplesmente por estar concorrendo com O PIANISTA e GANGUES DE NOVA YORK, que são, a meu ver, obras-primas.
Abraço!

P.S.: como citou diversas vezes o Bob Fosse no seu texto, me lembrei daquele que talvez seja seu maior filme, CABARET. Já comentou sobre ele aqui no blog? Se não, fica a dica...

História é Pop! disse...

Gostei muito de Chicago, em especial do personagem de Catherine Zeta-Jones(Velma Kelly) ela virou minha heroína por tempos. Adorei a forma como ela deu a volta por cima, PERFEITA!!!!!
Mas falando do filme sim si: músicas, coreografias divinas, tudo em Chicago conclusão, Chicago mereceu cada Oscar que ganhou (teve injustiças também com Chicago o caso de Rob Marshall ) mas nem tudo é maravilha no mundo das grandes premiações!!!!!!
Obs: tenho até vergonha de postar aqui, só tem gente fera!!!!

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