Diário de um prostituto?

Como se sustenta a prostituição gay? Como funciona o sexo feito pelo dinheiro? Qual a dinâmica que se estabelece entre os prostitutos e seus clientes? Grande estudioso do universo da homossexualidade e conhecedor sobre a natureza dos “profissionais do sexo”, o cineasta John Graham desenvolveu um provocador roteiro que desnuda o universo da prostituição masculina. Selecionado em diversos festivais de cinema LGBT nos Estados Unidos, Garoto de Programa é um trabalho realista e polêmico que decide investigar as vivências da juventude que se presta ao sexo apenas pelo dinheiro. Tão preciso quanto o já clássico “Garotos de Programa” de Gus Van Sant, essa produção tem mais substância e sensualidade que o tão falado “Bruna Surfistinha”, por exemplo. Ao personificar também as relações sexuais gays, o filme acaba por trazer à tona várias questões pungentes que agem como um forte sentido de reflexão humana. Com um roteiro bem articulado, ousado e que decide, sem medo algum, explicitar as relações de sexo pago, Graham acaba por exercer uma jornada de psicossexualidade que vai além. A ação se centra durante uma noite de atendimento de um michê (Ben Bonenfant), num único prédio — chamado por um dos personagens como o local “mais gay da rua mais sexual da cidade”. Acompanhamos o jovem, típico estereótipo sexual dos sonhos, já que é libidinoso, sensual e masculinizado. O que parecia ser apenas uma única noite de serviço torna-se um emaranhado de situações sexuais, já que o michê acaba por transitar entre diversos apartamentos do mesmo prédio, envolvendo-se com vários homens de diferentes personalidades.

Verbalmente e visualmente sedutor, o filme acompanha bem de perto a jornada sexual noturna do michê dentro do prédio sob uma forte tempestade. O interessante é que ele não se limita aos enquadramentos eróticos, apenas, das transas — evidentemente, várias são as cenas que sustentam o teor homoerótico da película, visto que há um tom bem realístico em pontuações de sexo oral e sodomia praticada pelo michê com seus clientes. Várias cenas de nudez, a câmera demoradamente nos corpos dos homens, o olhar penetrando os atos sexuais que podem até constranger um espectador despreparado. Mas, o filme não se limita nesse sentido, acaba por tratar, já que tem uma linguagem bem íntima com seus personagens, elementos de reflexão da própria moral do protagonista. Por que um jovem tão novo decidiu se prostituir? O que faz uma pessoa viver no vício do dinheiro ganho pelo sexo com um desconhecido?

Enquanto se envolve com seus clientes, o michê — que não sabemos a real identidade, já que “troca” de nomes a todo instante — aparenta ser um indivíduo que gosta de transar com desconhecidos, viciado nas “transas do acaso”, sem nenhum indício de apego sentimental com ninguém ainda que seja bem carinhoso com eles. E John Graham, cuidadosamente, explora a personalidade do michê que acaba por misturar-se com o universo de cada cliente que vem experimentar seu corpo. O prostituto torna-se uma espécie de ouvinte das confidências de seus clientes que divide com ele seus dramas, solidão, anseios e dúvidas reais.

E a linguagem do filme é bem direta, íntima e vai fundo no universo da prostituição através deste único protagonista. Admirável a maneira como o roteiro acaba por acentuar estereótipos de pessoas comuns imersas nas relações casuais, dos redutos homossexuais, das comunidades sexuais obscuras. Há um cliente que nunca conseguiu esquecer o primeiro amor de adolescência; há um outro que se entrega ao vício da cocaína, leva uma vida com a prática do sexo e o uso imoderado de bebidas; há o homofóbico casado que procura o michê para realizar suas fantasias secretas, mas sofre por conta dos desejos que sente — compreende-se aqui o universo dos enrustidos, dos que tentam mascarar suas verdadeiras opções sexuais, sem sair do armário. E o filme mostra muito bem esse sentido da homofobia através de um personagem que se envolve com o michê, numa seqüência de sexo bem desconfortável, por sinal.

Ademais, John Graham também insere inúmeros diálogos reflexivos que faz com que o jovem insaciável michê acabe por olhar para si mesmo, é quando aqui o sexo deixa de ser apenas um exercício para virar um elemento de desconstrução de seu personagem. O michê eficiente, sexualmente disposto, acaba por questionar sentidos de sua vida, do sentimento, reflete perspectivas pessoais. Surpreendente, o filme usa da prostituição gay masculina para preservar uma reflexão de mundo e é neste sentido que a obra torna-se mais indispensável. E só por pegar um tema já famigerado e incluir elementos mais provocadores, a película tem sua força. A direção é extremamente segura, pontual. O cineasta limita seus personagens em quartos escuros ou salas com fotografia que prioriza tons de vermelho e azul. Os diálogos sinceros e efusivos são apoiados pela trilha do cantor americano Jay Brannan que já é recorrente no cinema queer. O jovem ator Ben Bonenfant concebe uma atuação sensual, convincente como um prostituto de fortes apelos libidinais e total carisma em cena.

Strapped (EUA, 2010)
Direção de John Graham
Roteiro de John Graham
Com Ben Bonenfant, Nick Frangione, Artem Mishin

20 opinaram | apimente também!:

ANTONIO NAHUD disse...

Valeu a dica, Cristiano. Vou assisti-lo. Vc já viu o espanhol EL CÔNSUL DE SODOMA? Muito interessante.

O Falcão Maltês

Gabriel Neves disse...

Ótimo texto. Quando vi esse filme no Em Breve, achei que era o do Gus Van Sant, rs. Mas parece ser um bom filme, a temática já me interessou bastante.
Abraços!

Fernando Fonseca disse...

Interessante. Não conhecia este filme, mas após este texto detalhadíssimo e bem construído do Cris, fiquei com vontade de assistir.

Clenio disse...

Primeiro: não há como não ser melhor do que "Bruna Surfistinha" que, a meu ver, é uma bomba. Mas é preciso admitir que "Strapped" merecia melhor sorte e melhor distribuição, porque realmente é um pequeno grande filme.
A situação kafkiana do protagonista em um prédio labiríntico é tratada de forma natural pelo roteiro e o ator central é uma revelação, porque consegue mesclar inocência e devassidão.
Belo filme, em breve também escreverei sobre ele.

Abraços
Clênio
www.lennysmind.blogspot.com
www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

Dica anotada, ainda não vi nenhum dos dois filmes, por completa falta de tempo mesmo!
Mas o tema me fez lembrar da música de Zé Ramalho, "Garoto de Aluguel":

"Minha profissão
É suja e vulgar
Quero um pagamento
Para me deitar
E junto com você
Estrangular meu riso
Dê-me seu amor
Dele não preciso..."

Elton Telles disse...

Nunca vi mais gordo. Tá aí outro filme que descobri nas sessões apimentadas do blog. Ah, te falei que assisti "Um Quarto em Roma"? Hihihi, gostei muito rs. Depois nos falamos.

Esse aí me lembrou um pouco o homônimo de van Sant que você cita no texto, talvez mais sensual, sei lá. É o melhor filme do diretor e se as comparações são válidas, já vale a assistida.

Abs!

renatocinema disse...

Parece ser um grande filme.

Assim como meu amigo Gabriel, me enganei com o "Em Breve": achei que era o do Gus Van Sant.

Vou ver o filme

Alan Raspante disse...

Ótima análise como sempre, Cris. Gosto muito do tema proposto e já até tinha ouvido falar deste filme, só não tinha dado a devida atenção. Bom saber que o filme é bom e vale a pena. Irei vê-lo em breve, pelo menos assim espero, rs

Abs :)

Thiago disse...

Boa review, mas não curto muito o gênero, na verdade, a proposta em si. Foi mal pela demora, como falei, tinha gente HAHA abraço!

Marcio Melo disse...

Ótimo texto (como sempre) mas o filme não me interessou nem um pouco. Não sei, fica a sensação de ser apenas a versão masculina do filme "Confissões de uma Garota de Programa".

Unknown disse...

Parece um filme interessante mesmo, teu texto inspirado confere isso, talvez até veja esse ano, mas com tantas recomendações suas... não sei se verei logo...rs

Abração!

Ccine 10 disse...

Para ser sincero nunca nem ouvi falar nada sobre esse filme. Mas pelo seu texto parece ser um filme que vale a pena conferir.
Esses últimos dias estou sem pique para tantos filmes, mas em janeiro entro de férias e vou tentar colocar minhas listas em dia.
Belo texto como sempre.

Adecio Moreira Jr. disse...

Filmes sobre michês tendem a ser chatíssimos e forçados, né. Ainda não vi esse, mas quem sabe é um diferencial...

George Luis disse...

Ainda não tive a oportunidade de assistir esse filme, mas suas palavras tornam minha lacuna cinematográfica num desejo de conferir este filme.

Suas leituras do cinema à luz da sexualidade são muito ricas e instigam nós, espectadores, a ver (e rever) os filmes mais atentos, mais analíticos e, claro, mais à flor da pele.

Júlio Paiva disse...

Fiquei curioso para ver o filme, mas passou a impressão de ser mais um pop gay,com forte apelo sexual, desculpe meu comentário talvez incrédulo,mas é que as discussões sobre sexualidade nunca passam de maniqueísmos rasos.

Rodrigo Mendes disse...

Eu já devo ter ouvido o trabalho de Jay Brannan neste âmbito, mas este filme eu ainda não assisti.
Acho o filme do Van Sant um clássico neste quesito. Quem sabe eu goste deste? Excelente dica!

Abração!

Kamila disse...

Como sempre, você fazendo grandes textos sobre esses filmes mais "obscuros", que pouca gente conhece, mas que estão doidos para serem descobertos. Adicionei à lista de recomendações e espero poder assistir algum dia! :)

Edson Cacimiro disse...

Realmente como diz o cartaz: "honesto e inteligente" e muito realista.

www.osenhordosfilmes.blogspot.com

LuEs disse...

Eu já havia encontrado esse filme para baixar, mas eu nunca o baixei, porque sempre achei haver algo na sinopse ou nas imagens dele que simplesmente buscassem chocar e não argumentar e trabalhar suas cenas de modo a ser artístico.

Lendo o que você comentou eu realmente fiquei curioso para vê-lo e inclusive o coloquei como um dos filmes seguintes da minha lista, que inclui um outro que você já resenhou aqui, Boy Cultura, se eu não me engano.

Ótima resenha, Cris.

renatocinema disse...

Férias? Assisti ao filme. kkk

Vamos lá: Quando você afirma: "tem mais substância e sensualidade que o tão falado “Bruna Surfistinha”.

Tenho que concordar com cada letra..definição perfeita.


Assino também quando diz que o filme possui linhguagem direta, íntima e que vai fundo no mundo da prostituição.

Sendo sincero, ainda gosto mais de Garotos de Programa. Porém, não posso negar que Garoto de Programa possui uma enorme força cinematográfica.

Valeu pela dica

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