Uma Rua Chamada Pecado?

Tenesse Williams sempre viabilizou inúmeras discussões sobre fragilidades e anseios humanos em suas peças. Mas, a mais evidente, sem dúvida, é a questão da sexualidade. Muitos de seus textos adaptados no cinema — os mais conhecidos Uma Rua Chamada Pecado ou Gata em Teto de Zinco Quente — centrava-se nas motivações libidinosas e sensos ardentes sobre humanos em busca de prazer, do desejo como fonte até de perspectiva humana. Vidas em Fuga, infelizmente, é o mais desconhecido trabalho do autor que roteirizou a partir de uma peça sua sutilmente baseada na lenda de Orfeu. É um trabalho primoroso dirigido pelo então jovem Sidney Lumet. O filme intimista, melancólico e extremamente dramático, tem todas as principais características do dramaturgo. Um andarilho altamente sexualizado e sedutor Valentine Xavier (Marlon Brando) foge de sua cidade natal por conta de um crime que cometera. Rebelde viril, famoso por envolvimentos polêmicos com inúmeras garotas, recebe a alcunha de "Snakeskin" por conta de seu casaco de pele de cobra. Sob essa figura masculina, selvagem e dotada de muita propensão ao sexo, é que o filme se sustenta. Valentine busca emprego em um povoado do Mississipi, lá conhece a loira fogosa Carol Cutrere (Joanne Woodward), uma garota destemperada, a típica ovelha-negra que abalou a comunidade com suas opiniões agressivas e atitudes imoderadas. É ela que apresenta o fugitivo à Lady Torrance (Anna Magnani), esposa de um comerciário à beira da morte que precisa de um ajudante já que seu marido não tem condições de assumir a loja. Inevitavelmente, esse triângulo vai abalar a calmaria da cidade.

Sidney Lumet teve a feliz ideia de reunir três importantes ícones de Hollywood — todos vencedores recentes do Oscar — no seu espetáculo emotivo de tensão sexual. Marlon Brando aqui foge de uma interpretação mais visceral, tão habitual em seus filmes da década de 1950. Ainda que contido, não atenua sua disposição sensual em cena que é bem reforçada pela direção de Lumet que capta bem a tonalidade misteriosa de seu personagem. Interessante a maneira como seu personagem mexe com os sentidos de todas as figuras femininas do filme — mesmo sendo um homem silencioso, certos diálogos maldosos ou mesmo o seu porte viril, chama atenção de todas as mulheres. Joanne Woodward como uma ninfomaníaca e alcoólatra também fascina, deliberadamente maliciosa, é a primeira a demonstrar tesão pelo forasteiro recém chegado à comunidade. Porém, a italiana Anna Magnani é que fundamenta o teor romântico da película e fomenta a sexualidade mais explícita. Suas cenas com Brando são poéticas, reflexivas e acentua o contexto de sensualidade da trama. É através do desejo proibido e da relação adúltera de Lady Torrance com Xavier que o filme discute também posicionamentos de traição, ciúmes, feminismo e até sensos de solidão. A química interpretativa de Brando com Magnani é intensa, ambos parecem em constante ebulição de desejo e sentimento.

Além dos diálogos sempre hiperbólicos bem característicos de Tenesse Williams: as duas mulheres em colapsos nervosos — Carol e Lady Torrance, expondo suas aflições e desejos carnais por um objeto másculo que induz à provocação sexual —, o filme tem um tom melancólico que aumenta o sentido dramático. Todos os três atores surpreendem pela boa sintonia, interpretações expressivas e pela transparência solitária de seus personagens. Todos em busca de amparo, desejo e afirmação. E Sidney Lumet não tem medo de vasculhar os sentimentos mais verbais dos seus personagens, por isso insere suas lentes nos rostos dos atores, em closes extensos, um bom recurso imagético à narrativa. A potência teatral de encenação aqui é leve, ainda que os diálogos sejam efervescentes. A fotografia de Boris Kaufman em preto e branco é belíssima também, iluminação expressionista cheia de sombras e luzes que sabem destacar os olhares de desejo de Marlon Brando por Anna Magnani — por sinal, na época, soube-se que a atriz encheu-se de encanto pela beleza do ator, mas foi rejeitada por ele, criando-se certa indisposição entre ambos nas filmagens. Decerto, é perceptível o clamor do sexo que a produção exala. E polêmico também o indício de que o personagem de Brando, na verdade, fosse um prostituto. Mas, o roteiro deixa subtendido tudo. Um filme ainda sedutor que dialoga bastante com os tempos atuais, das questões morais que nunca cessa, por isso não há de envelhecer jamais.

The Fugitive Kind (EUA, 1959)
Direção de Sidney Lumet
Roteiro de Meade Roberts e Tennessee Williams, baseado na peça de Tennessee Williams
Com Marlon Brando, Joanne Woodward, Anna Magnani, Maureen Stapleton

12 opinaram | apimente também!:

Emmanuela disse...

Adorei analisar este filme, como já disse por aqui, adoro as adaptações cinematográficas das peças de Williams.

Marcio Melo disse...

Gosto de filmes que "não envelhecem" e este é um bom exemplo.

Gabriel Neves disse...

Não sei se já falei isso por aqui, mas seus textos são mais cheios de desejo do que o filme em si. Esse, por exemplo. Eu, procurando por sinopses, posteres e trailers, provavelmente não daria nada apesar do elenco. Mas você dá vontade de conferir.
Abração.

Fernando Fonseca disse...

Não vi o filme. Mas já li várias discussões sobre ele. Texto do Williams. Direção do Lumet. E tem o jovem Marlon Brando. É um crime não ter visto ainda.

Fábio Henrique Carmo disse...

Cristiano, esse eu ainda não vi, mas vou procurar urgentemente. Marlon Brando e Sidney Lumet juntos? Sensacional!

Abraço!

Kamila disse...

As peças do Tennessee Williams sempre são muito densas e, normalmente, rendem excelentes adaptações cinematográficas. Ainda não conferi este filme e, pra ser bem sincera, não o conhecia. Mas, o elenco, a trama e o diretor muito chamam a minha atenção.

Unknown disse...

Tenho q rever esse, mas não sei se será breve, com tantas prioridades...
Mas lembro q qd assisti achei um pouco chato, mas eram outros tempos na minha cinefilia. Vc realmente acha q as questões morais nunca cessam? Talvez nos EUA, mas no Brasil vejo td tão amoral...por isso muitas vezes esses filmes americanos com personagens cheios de repressões ou conflitos sexuais não me convencem, mas claro q esse é meu ponto de vista. Respeito muito o seu, apesar de vc achar q sempre quero te rebater...rs. Para finalizar, teu texto instiga bastante a assistir o filme, q valeria mesmo uma olhada, até pelo elenco. Abração!

renatocinema disse...

Se o roteiro nos apresenta roteiro intimista, melancólico e extremamente dramático, sou obrigado a ver o filme.

Marlon Brando era um símbolo, quando inspirado.

Amanda Aouad disse...

Tenesse Williams consegue ser denso e ter diálogos fortes. Gosto do estilo. E Marlon Brando era o verdadeiro Deus, mesmo gordo em Don Juan ainda era charmoso. hehe.

bjs

David Cotos disse...

Interesante, no sabìa de la existencia de esta película.

Rubi disse...

Cristiano! Encontrei teu blog por acaso e fiquei fascinada com o conteúdo. A começar pelo primeiro texto que vi quando entrei. Preciso de um bom tempo pra olhar todos os textos, pois certamente são tão bons quanto este.

Aproveitei a visita para lhe seguir também. Espero poder contar com sua ilustre visita no meu blog um dia desses hahaha

Até mais e parabéns pelo trabalho!

Alan Raspante disse...

Não conhecia o filme, mas sendo de Tennessee Williams, tendo Brando e Lumet na direção é um filme a ser considerado. Vou tentar assistir, a premissa me pareceu interessante.

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