Má educação?

Em 1939 o Reformatório Católico de São Judas na Irlanda tornou-se centro de uma polêmica. Garotos eram constantemente espancados e violentados sexualmente pelos padres da instituição. O fato verídico é tratado com cuidado e crueldade neste forte filme. A diretora Aislin Walsh propõe um estudo polêmico que causa comoção diante dos fatos apresentados na trama. O professor laico Franklin (Aidan Quinn) é o único designado a trabalhar no reformatório, é lá que ele se depara com uma realidade permeada de imoralidade e muita hipocrisia. O Inferno de São Judas explora, através das percepções desse educador, o universo corrompido da instituição que finge seguir os preceitos religiosos. Franklin passa a confrontar toda a autoridade do local — bate de frente com o sádico diretor, Irmão John (Iain Glen), um homem perverso que abusa de sua condição para maltratar os garotos. Em meio ao caos da Segunda Guerra Mundial, há a luta de um educador em busca de justiça num meio tão opressor. Franflin passa a nutrir uma confiança natural por conta de seu caráter, é quando ganha a amizade de cada interno do local. Como acabar com a impunidade que parece reinar? O que fazer para amenizar o próprio inferno num local onde deveria existir a bondade? Inúmeros porquês são condicionados ao longo da projeção.

O longa tem um roteiro provocador, não se intimida em desmascarar as torturas sofridas - tanto físicas ou emocionais - pelos internos. O cenário do reformatório é lúgubre, um misto de pânico e medo. A fotografia ajuda nesse quesito já que é feita de tons terrenos, cinzas e marrons. O público facilmente se identifica com a atmosfera criada por Walsh que sabe dirigir, prioriza-se um tom emocional na condução dos atores. A polêmica em colocar a tortura física causa leve desconforto, ainda que as cenas não sejam tão explícitas. Contudo, há o choque quando a questão da sexualidade pervertida é colocada em debate. O longa mostra o sacerdote Mac (Marc Warren) que usa os garotos para se insinuar e abusar sexualmente sem que haja uma punição aos seus atos — a sequência em que o padre estupra um dos garotos é tensa, bastante crua, um retrato bem doloroso de se enxergar. O filme não decide insistir que existia ali um distúrbio sexual por conta de uma sexualidade reprimida e duvidosa dos sacerdotes.

Pelo contrário, o roteiro prefere alertar o abuso intolerável sofrido pelos garotos que não tem como se defender de seres tão desumanos. Externa-se aí, então, contextos de pedofilia que provêm dos atos perversos dos padres que abusam dos garotos, mas a discussão no roteiro não rende tantos detalhes. A perspectiva é mais próxima do sofrimento dos internos que sob a visão motivadora dos sacerdotes. Assim, o público acaba por se chocar com é vivenciado na projeção de tais cenas. Não é a toa que o filme foi utilizado em algumas cidades da Inglaterra em diversos centros de educação e reabilitação de crianças vítimas de abusos sexuais. Nota-se aqui que é um trabalho que ajuda na reflexão, não insere uma violência ofensiva e intolerável de assistir.

O roteiro não se limita, ainda assim. A figura do professor Franklin vem como uma esperança no filme. Aidan Quinn personifica muito bem um homem de princípios corretos, humano e disposto a lutar à favor dos órfãos torturados constantemente. Ele desaprova completamente todos os métodos exercidos pelos sacerdotes, além de questionar certas posturas religiosas no reformatório. É a luta da educação contra as visões idealistas — e também acobertadas de mentiras e hipocrisias — da Igreja. Ainda que o público se sinta desconfortável com tais cenas de tortura física ou abuso sexual vivenciado pelos jovens, as indagações que o roteiro articula e a direção de Aisling Walsh promovem um espetáculo cinematográfico. É um filme pequeno, intimista até, mas de grande proporção emocional por conta de um tema tão delicado quanto este. Ainda mais por ser um tema tão recorrente ainda na atualidade. Não deixa de ser uma abordagem que alerta. Talvez, o único problema seja a pouca duração para uma abordagem que, definitivamente, ainda poderia render um melhor aprofundamento. Na realidade, é um tema muito polêmico, tornando a curiosidade do espectador mais alerta.

Song for a Raggy Boy (EUA, 2003)
Direção de Aisling Walsh
Roteiro de Aisling Walsh, Kevin Byron Murphy
Com Aidan Quinn, Iain Glen, Marc Warren

13 opinaram | apimente também!:

Gabriel Neves disse...

Realmente, o tema é bastante polêmico, mas qualquer tentativa de reprodução para um alerta é sempre bem-vinda. Não conhecia O Inferno de São Judas, mas parece ser um ótimo filme.

Thiago Quintella de Mattos disse...

Acho que tenho este filme aqui! Muito tenso mesmo!

*** Cris *** disse...

É um tema que deveria ser tratado por todos para que não se repita em nenhuma circunstância.
Bjs!

Kamila disse...

Adoro esse tipo de história e, caso ela seja bem explorada, rende um bom filme, o que parece ser este caso. Mais um pras dicas do Apimentário! :)

Ccine disse...

Você encontra uns filmes para escrever... rs.
Nunca tinha ouvido falar desse filme, mas pelo seu texto deve ser bem interessante.
Belo texto, me causou vontade de procurar para conferir.

Unknown disse...

Já tinha ouvido falar desse filme, sempre me pareceu interessante, mas por descaso acabei não vendo. Seu otimo texto como sempre faz um dissecamento da obra sem revelar muito, o que acaba rendendo mais vontade ainda de assistir. Gosto de Aidan Quinn, mas é um ator tão subaproveitado, pena.

J. BRUNO disse...

Esta questão que o filme aborda é complexa e envolve um quantidade enorme de fatores que precisam urgente serem revistos, um deles é a punição que a igreja como instituição deveria exercer sobre os padres pedófilos, outro ponto, um pouco mais complicado é a questão do celibato, em torno do qual muitos seminarista se refugiam numa tentativa de silenciar a própria sexualidade... Fiquei curioso para ver o filme, certamente ele deve render ótimas discussões...

http://sublimeirrealidade.blogspot.com/2011/12/roma-cidade-aberta.html

Sandra Cristina de Carvalho disse...

Você descreveu o filme com imparcialidade, ponderação,
com total isenção de julgamentos particulares.
Simplesmente revelou na sua narrativa, a realidade nua e
crua, sem deixar que transparecesse sua opinião quanto a sexualidade colocada em questão no filme.
Comentou sobre o roteiro neutralizando o histórico psicológico dos personagens, numa abordagem objetiva e realista.
Relatando os fatos ocorridos num universo de hipocrisia, repressão e autoritarismo, você retratou com exatidão a sinopse, baseando-se unicamente nos fatos dentro das
percepções inseridas no contexto geral do filme.
Uma resenha diferenciada, onde sua visão analítica cedeu lugar a uma abordagem mais textual.
Parabéns pela sua delicadeza em relação a essa temática, propondo um estudo cuidadoso quanto aos acontecimentos, limitando-se apenas à demonstração do conteúdo, como só um grande cronista é capaz de realizar.
Beijos.
Sandra Cristina.

Thiago Quintella de Mattos disse...

É um filme para ser visto e revisto. Algumas de nossas tensões são aliviadas. E, assim como em Sociedade dos Poetas mortos, chorei! Um tema polêmico.

Luís disse...

Acredito que os filmes que abordam a pedofilia são bem interessantes, mas é dificílimo que eles se sustentem se percorrer características pedantes ou histriônicas que beiram a apelação. Pelo que você escreveu, esse parece ser um filme de qualidade indubitável e que discorre bem a respeito desse assunto delicado. Vou procurá-lo para vê-lo também, fiquei curioso pela história e também por que histórias baseadas em fatos reais me interessam.

Queria propor aqui que você analisasse o filme "Machuca", produção chilena de 2004, que fala sobre os conflitos políticos no Chile na transição do governo de Allende para o governo de Pinochet. Ainda que não seja picante, é um filme que mostra a amizade de duas crianças e a sexualidade eventualmente aparece, como símbolo para o amadurecimento e a seriedade pela qual o país passa.

renatocinema disse...

Produção usa um tema complicado hoje e eternamente.


Gosto de filmes provocador que não se intimidam, mesmo diante da força da igreja.

A presença do bom ator Aidan Quinn é outro ponto a favor do filme.

Baixei hoje na net. Vou assistir antes das férias.

Carol disse...

Eu quero assistir esse...deve ser bom :)

welley disse...

Foi o filme mais lindo que eu ja assisti até hoje. se alguem quiser conversar sobre o filme me siga no tweeter:@liammercie e no meu e-mail:welleyharperdias@gmail.com

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