Sensualidade clássica?


O tesão cria dependência? Dita regras e direciona o modo de vida? Como entender o sexo do ponto de vista psicótico? O que caracteriza o desejo violento? O ser humano consegue ser ardiloso no que tange as suas ânsias libidinais. Algumas respostas dessas indagações podem ser executadas através do clássico e polêmico livro de Vladimir Nabokov adaptado por Stanley Kubrick em 1962. A história de provocação sensual, indícios marcantes de conflitos sentimentais e carência afetiva, tornou-se sinônimo de perversão quando potencializou maior provocação ao abordar questões como pedofilia e transgressão sexual. Com um material tão denso e de temática delicada, Kubrick praticamente teve problemas na condução — o roteiro foi reescrito para se enquadrar na censura e nos padrões aceitáveis dos "códigos morais hollywoodianos", fundamentando a sutileza no corpo erótico tão condicionado no cerne literário. Lolita mostra a trajetória de um professor europeu recém chegado aos Estados Unidos Humbert Humbert (James Mason) que se instala num quarto alugado na mansão de uma viúva solitária, Charlotte (Shelley Winters). Ao conhecer a filha dela, Lolita (Sue Lyon), de 15 anos de idade, o homem fica fascinado. É então que, no intuito de aproximar-se mais da garota, Humbert casa-se com Charlotte e, assim, inicia um envolvimento que acaba por providenciar inúmeras problemáticas na família. Nota-se aí o apelo para a obsessão, o grau de distúrbios emocionais, já que o professor passa a nutrir um sentimento intenso e destrutivo, além de sentir-se atraído sexualmente pela jovem.

Inevitavelmente, diante de tanta censura e imposição por parte dos estúdios, Kubrick realiza um filme bastante polido e de grande formalidade. Prima mais pelo tom psicológico. Não há o verniz erótico, ao invés disso, posicionamentos sexuais são subtendidos constantemente e, ainda que atenuados, o público percebe este teor na narrativa. Através de uma metragem longa (o filme tem 152 minutos), o livro consegue ser bem adaptado, porém a forte carga sexual e as inúmeras insinuações ou mesmo a exploração carnal tão bem arquitetada por Nabokov em seu livro é extremamente suave durante a projeção.

Veemente, nota-se que a abordagem “imoral” do professor com a ninfeta é modificada — se no livro Lolita tinha 12 anos, no filme temos uma “quase-mulher” de 15 anos. Sue Lyon personifica essa garota com leve malícia, poucos diálogos que impõe sua personalidade dúbia e que dificilmente convence como algo mais libidinal. Porém, Kubrick investe num certo cinismo, ironia e sutilezas sensuais veladas, tentando burlar o sistema, captando bem a atmosfera do livro e coloca a jovem como um elemento de fascínio e excitação por parte de Humbert. James Mason convence como este homem que espreita, perde o tino e se predestina por conta do tesão que o desorganiza. Ainda que bem sutil, nitidamente o filme mostra esse elo de aproximação entre ambos e como o professor deseja até a morte de sua esposa para, assim, ficar com sua filha virginal.

Por tratar-se de um tema ainda de apelo perceptivo à propulsão sexual, o filme ainda é um bom elemento de reflexão. Porém, é visível que diversos fatores foram atenuados para uma modulação mais dramática e menos “perversa”. Ainda que a Lolita tenha um aspecto inocente, mas de comportamentos avançados, personalidade ativa e certa aparência transgressiva — o roteiro também, inclusive, a coloca como um papel-título de mulher feminista, ditando regras e fugindo de condicionamentos do machismo social —, há uma leveza no que contorna a relação dela com o professor. Há poucos diálogos que nivelam a aparência de predisposição ao contato sexual, ao ato, à prática de exercícios físicos. Tudo é subtendido demais, inclusive as poucas sequências que pontuam a aproximação íntima de ambos aparenta um cuidado, o medo de “mostrar o indevido”. Nota-se que Kubrick teve o máximo de receio em mostrar o excesso, daí a falta de “atmosfera erotizada” durante toda projeção.

Ao reduzir a força maliciosa, o filme prefere investir na forma obsessiva da personalidade de Humbert por Lolita — James Mason, por vezes, aparenta uma atuação frágil, mas mantém uma química notável com Sue Lyon. O público imagina que há uma relação mais que afetiva, na possibilidade de sexo, já que o teor polido do roteiro oculta até mesmo um beijo explícito de ambos, porém a forte carga emotiva e a dimensão dramática da articulação desses dois em cena geram um forte impacto, satisfaz, envolve. A cena em que ele pinta as unhas dela é o exemplo perfeito de representação do fetichismo: o tesão pelos pés femininos. Se o desejo fica na entrelinha, a afetividade não. E a possessividade, o ciúme e o senso de paranoia invadem o universo quando Humbert passa a querer controlar todos os atos de “sua” Lolita. Por vezes, parece mais que há uma relação paternalista, já que ele não externa tanto a motivação carnal que o livro tanto exibia.

Ademais, há a forma enxuta que Kubrick lida também com personagens secundários: a única que exerce mais uma permissividade ou mesmo transparência libidinal é Shelley Winters que dimensiona uma mulher carente e ansiosa por uma relação mais carnal com Humbert, no primeiro ato do filme. Petter Sellers faz uma participação também notável como um homem de aspecto misterioso e personalidade complexa: Clare Quilty é um roteirista de Hollywood que demonstra certo interesse de caráter sexual com Lolita, mas também é o personagem mais "retalhado" do filme — há indícios de uma homossexualidade, mas o roteiro torna velados esses contextos psicológico-comportamentais dele. O público percebe em certos diálogos que o personagem demonstra certas perversões sexuais e interesses mais transgressivos. 

Como exercício de drama de uma história fadada ao “trágico romance”, aqui temos um belíssimo trabalho de roteiro e da direção de Stanley Kubrick. Se o público não tem a ânsia de absorver uma obra de cunho altamente erótico — e abrindo mão da posição liberal, libertina e transgressora idealizada por Vladimir Nabokov —, o resultado é bem acima da média. É um filme bastante interessante, sem ser vulgar e com atuações marcantes, principalmente de Sue Lyon que mantém uma atuação natural e precisa, diferente do restante do elenco que, invariavelmente, ainda que coesos, demonstram leve teatralidade no desempenho. Sob uma fotografia luminosa em preto e branco, Kubrick firma seu exercício como condutor, ainda que restrito às imposições, no traquejo perfeito por uma trama que mostra bem o desespero de desejar humanístico de amar alguém e enlouquecer por conta desse ímpeto. 


Lolita (1962, EUA)
Direção de Stanley Kubrick
Roteiro de Stanley Kubrick e Vladimir Nabokov, baseado no livro de Nabokov
Com Shelley Winters, James Mason, Sue Lyon, Peter Sellers  

11 opinaram | apimente também!:

Fábio Henrique Carmo disse...

Bem, mais uma obra de excelência do Kubrick. Seu texto está ótimo, mas, na minha opinião, quem rouba mesmo a cena é Peter Sellers. Já faz tempo que vi e estou precisando rever. Abraço!

Iza disse...

Lolita é um dos meus filmes prediletos. Ainda quero lê-lo também. Adorei teu texto!

Emmanuela disse...

Vi o filme há uns anos e li o livro recentemente. Preciso revê-lo para associá-lo ao livro.

Sem dúvida, a censura bloqueou a ousadia, mas a adaptação permaneceu competente.

Beijos...

Kamila disse...

Não assisti ainda a essa versão dirigida pelo Kubrick, mas de uma coisa eu tenho certeza: sem dúvida alguma deve ser melhor que a refilmagem do Adrian Lyne, que acho um tanto irregular.

J. BRUNO disse...

Este é um Kubrick que ainda não assisti Cristiano, sempre tive curiosidade também de ler o livro, cheguei a pegar ele uma vez na biblioteca do CCBB e não consegui ler por falta de tempo... Curioso que o livro foi citado em um dos episódios da série "In Treatment" que assisti hoje...

Gostei muito mesmo de sua resenha!

renatocinema disse...

Vamos por partes, como diria, insanamente, Jack - O Estripador: O tesão cria dependência? Dita regras e direciona o modo de vida? Sim as duas perguntas.

Kubrick, talvez meu diretor predileto (eterna dúvida entre ele e Scorsese) realmente faz um grande trabalho em Lolita. Direção perfeita.


Adoro essa versão. Uma aula de sensualidade, malicia, e de cinema.

Mayara Bastos disse...

Mesmo por ter sofrido a tal censura, gosto dessa versão mesmo pela preocupação do Kubrick na parte psicológica, mostrando que não precisa ter um teor físico para contar a história, diferente da refilmagem do Adrian Lyne.

Enfim, belo texto! ;)

José disse...

Bem, eu vi esse filme a muito tempo, logo eu era bem jovem. Por isso eu lembro muito pouco, mas como você falou é um filme que retrata a obsessão (e por isso também a loucura, um tema recorrente nos filmes do Kubrick)
E aproveitando esse post, gostaria de fazer uma indicação: Um livro que se chama "The Philosophy of Stanley Kubrick", que é uma coletânea de artigos sobre o tema, e um específico (que ainda não li) que faz uma análise desse filme.

José disse...

Aproveitando o post, vou indicar um livro bem interessante que se chama "The Philosophy of Stanley Kubrick", que é uma coletânea de artigos sobre o tema, que inclusive conta com um artigo (que ainda não li) que analisa especificamente esse filme, que se chama "The Logic of Lolita: Kubrick,Nabokov, and Poe". Só não me pergunte o que o Edgar Allan Poe tem a ver com o filme (talvez por ser um autor que aborda de certa forma a obsessão e a loucura, assim como o Kubrick em seus filmes).

José disse...

Aproveitando o post, vou indicar um livro bem interessante que se chama "The Philosophy of Stanley Kubrick", que é uma coletânea de artigos sobre o tema, que inclusive conta com um artigo (que ainda não li) que analisa especificamente esse filme, que se chama "The Logic of Lolita: Kubrick,Nabokov, and Poe". Só não me pergunte o que o Edgar Allan Poe tem a ver com o filme (talvez por ser um autor que aborda de certa forma a obsessão e a loucura, assim como o Kubrick em seus filmes).

Eliel disse...

É um filme prenhe de sensualidade, mesmo por sob o véu da repressão da sexualidade, que não permite passar um beijo sequer. Mas Kubrick supera, suplanta e suplementa tudo, sempre. Uma obra maravilhosa e inspiradora.

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