Feminismo vampiresco?


O universo vampiresco sempre executa a sensualidade diante de aspectos da personalidade dos ditos seres da noite. Não é para tanto que Tony Scott estreou com esse senso proeminente no seu Fome de Viver, um trabalho tão autoral e com um posicionamento bastante estético, talvez por isso o filme seja visto como algo peculiar e cultuado por uma parcela cinéfila que buscam trabalhos mais experimentais. Não por ser um filme que utilize do caráter do vampiro, mas a verdade é que esta produção é, na realidade, também uma trama que exemplifica o homoerotismo feminino, além de conferir um olhar quanto às dependências emocionais da humanidade que vivem imersa na solidão e alheia às relações de posse e afeto duradouro. Daí resida o apelo dramático vivido por David Bowie (John Blaylock) que aqui vivencia o tormento de envelhecer rapidamente — o vampiro abalado que viveu há anos sob a custódia e luxúria de uma relação com Catherine Deneuve (Miriam Blaylock), agora amarga o desespero dos "efeitos colaterais" que é permanecer sob o comando da fêmea-imortal. Perturbado, procura a médica Susan Sarandon (Sarah Roberts) para auxílio desta cruel doença. O roteiro é astuto em construir esta noção ao público: há milênios Miriam escolhe um companheiro, na promessa de estar ao seu lado ("Forever and ever"), num rito de austeridade e beleza eterna. Quando a pessoa passa a envelhecer subitamente, logo a vampira parte para a nova vítima que irá de exercer a função de "dama de companhia".

A grande questão desenvolvida é justamente de acordo com a perspectiva da vampira personificada por Catherine Deneuve — nunca o roteiro procura utilizar de elementos vampirescos óbvios para transmitir suas intenções. Não há caixões, não existe temor diante do crucifixo, não precisam andar à noite fugindo do sol. Ainda assim, existe o verniz sombrio diante de uma fotografia cinzenta que captura bem tons escuros e mantém o olhar intimista quanto ao lado melancólico e visivelmente macabro dessa mulher imortal. Contudo, a película acentua o sangue como representação vampírica e que dá todo sentido gótico à obra. Tony Scott torna a elegância de Deneuve em algo mais libidinal ao passo que aproxima sua personagem com a de Susan Sarandon, eis a exploração de algo mais homoerótico e sexual, mas que não deve ser taxado apenas de filme lésbico por emular esse condicionamento.

Por ser um filme de vampiro, é necessária a conceituação da sensualidade que é tão preservada neste ambiente narrativo. É interessante a forma como o roteiro induz a relação de Deneuve com Sarandon — existe aí um interesse mútuo. Por parte da vampira, estabelece a necessidade de criar um vínculo relacional com a outra que tanto lhe apetece. Por parte da médica, há uma espécie de fetiche e atração física já que Miriam transparece uma sensualidade natural. A cena em que ambas conversam, trocam flertes e sucumbem no ato sexual é bastante envolvente e muito bem articulada. Tony Scott não esconde a intenção em exercitar a movimentação dos corpos diante de sua câmera curiosa, esmiuçando os seios femininos, mas, ainda assim, não vulgarizando — o que numa percepção inadequada poderia render um momento desconfortável ou mesmo explícito ao público. Aí reside o misticismo ou o arquétipo básico de que todo vampiro fascina e promove um tesão na humanidade? Temos o retrato óbvio da sensualidade da relação de vampiro com o humano.

O que torna mais sensual é mesmo a plasticidade, Fome de Viver é feito com um dinamismo por ser bem editado e é ousado na estética. É tanto que logo nos primeiros minutos da projeção evidencia a noção de "sexo, sangue e rock" estimulando algo erotizado. Tony Scott exerceu um tom bem provocativo em seu primeiro filme, sem fundamentar algo raso e óbvio — o que veio ocorrer com seus demais feitos "hollywoodianos". Ainda que seja sombrio constantemente — a canção "Bela Lugosi's Dead" de Bauhaus proporciona toda uma atmosfera soturna e densa —, há o apego pela forma dinâmica narrativa em que se sustenta certo apelo nervoso de David Bowie no princípio e na posterior relação de sangue e libido protagonizadas por Deneuve e Sarandon. O filme é ágil e mantém uma dimensão de exercício experimental pelo modo que expressa a montagem e a ousadia de aliar uma condução narrativa que vai do poético ao sinistro — as soluções finais exploram o lado mais macabro que se assemelha a um filme de terror-gótico. Um belo trabalho criativo, sem dúvida.

The Hunger (Reino Unido, 1983)
Direção de Tony Scott
Roteiro de Ivan Davis, James Costigan, Michael Thomas, Whitley Strieber
Com David Bowie, Catherine Deneuve, Susan Sarandon, Dan Hedaya

16 opinaram | apimente também!:

Márcio Sallem disse...

Pena que um pouco depois desse, Scott se rendeu a Hollywood e poucos dos seus trabalhos realmente valeram a pena.

ccine10 disse...

Nunca assisti ao filme, parece interessante.
Como sempre seu texto é brilhante, dando maior vontade de ver. Em breve tentarei fazer isso.

Gabriel Neves disse...

Só fui conferir Fome de Viver esse ano, e só pela morte do Tony Scott. Que filmaço, que filmaço. Eu adorei Catherine Deneuve aqui, e toda a personagem dela abre bem uma exploração do amor, da vida eterna e da vaidade. Um dos melhores filmes de vampiros que eu já vi, apenas.
Abraços!

Elton Telles disse...

É uma pena que Scott não desenvolveu mais nada tão interessante quanto seu filme de estreia. "Fome de Viver" é um cult classic dos anos 80, libidimonsamente sangrento rs. Catherine Deneuve e Susan Sarandon juntas é de deixar qualquer um louco. Projeto experimental muito bem sucedido. Sou um grande admirador.

Belo texto! E bela repescagem, Cris.

Abs!

Anônimo disse...

Que absurdo ficar publicando filmes de sexo, a humanidade já está muito erotizada e ainda encontro um blog que só fala de filme desse conteúdo? Isso aqui é pornográfico demais pra mim e tô cansada de achar na internet coisas desse estilo. Acorde...isso é muito feio!!!

BrunoSgrillo disse...

veja bem, anonima! nao seria melhor vc apenas sair do blog? vc e nem ninguem é obrigado a nada por aqui.
Pq vc nao cria seu proprio blog? vc é capaz disso? deixa de discurso de tipo e perceba q esse blog fala mais do apenas sexo.

Bruno Sgrillo disse...

esse blog fala mais do apenas sexo.
a anonima acima relamente deveria deixa de acompanhar blogs e fazer o dela mesma evitando assim comentarios desse tipo.

Kamila disse...

Gosto do cinema do Tony Scott, mas ainda não tive chance de conferir "Fome de Viver", que parece ser uma obra diferente do resto da filmografia dele. Parabéns pelo texto!

Amanda Aouad disse...

É um filme extremamente estético, autoral e até mesmo experimental. Uma pena que Tony Scott não tenha permanecido nesse caminho.

bjs

Unknown disse...

Vou ser do contra...hehe...acho Fome de Viver mediano, idiossincrático por vezes, mas visualmente é interessante. No entanto, não tiro os méritos da produção. Ao meu ver, o melhor filme de Tony Scott, de longe, é Amor a Queima Roupa.

Abração!

Rodrigo Mendes disse...

Um caso raro na filmografia do Tony Scott. Discordo do Celo e acho que este é melhor ainda do que "Amor à Queima Roupa. Acho que script de Tarantino deve ser dirigido por Tarantino.

Bowie é um ótimo ator. Nem preciso comentar sobre Surandon e Deneuve...belíssimas!

Legal!
Abs.

J. BRUNO disse...

Eu assisti ele tem muito tempo Cris, talvez mais de 10 anos e na época o fiz só por causa da participação do David Bowie. Na época eu ainda não tinha um gosto cinéfilo bem apurado e não prestei atenção em boa parte dos aspectos que você mencionou no texto. Preciso revê-lo!

Abração!

Fábio Henrique Carmo disse...

Taí um filme que tenho vontade de ver e ainda não vi. Realmente uma pena que Tonny Scott não tenha seguido essa linha mais autoral por mais tempo. Abraço!

Giuliana Peneluc disse...

Não assisti ainda e nem preciso né com uma síntese dessas! Realmente uma condição bem inusitada a de uma vampira lésbica realmente ultrapassa o convencional a arte é linda por isso nos faz viajar pra outros lugares outras situações... Nos tornando assim conscientes da realidade.

Adecio Moreira Jr. disse...

O curioso é que Tony Scott, de fato, tinha um trabalhos bem peculiares. Não conhece esse propriamente, mas estive dando uma olhada na filmografia do cara e percebi que tem pérolas ali.

Amanda Aouad disse...

Sensual mesmo, não apenas pela vampira de Catherine Deneuve, mas pela estética do filme que tem um toque autoral e até mesmo experimental pouco visto na obra de Tony Scott. Depois de Top Gun (que marcou a minha adolescência, é vero), ele nunca mais foi o mesmo, uma pena.

bjs

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Aperitivos deliciosos

CinePipocaCult Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos Le Matinée! Cinéfila por Natureza Tudo [é] Crítica Crítica Mecânica La Dolce Vita Cults e Antigos Cine Repórter Hollywoodiano Cinebulição Um Ano em 365 Filmes Confraria de Cinema Poses e Neuroses