Fábula humana política?

Adeus, Lênin é um filme determinado humanista, retrato cinematográfico verbalizado com uma premissa bem concentrada em valores tangíveis. É a política que ganha contorno temático, é também uma lição de vida, uma aula sobre história e uma visão concreta da população com o fim da Alemanha Oriental - e é este cenário que evidencia o foco argumentativo do filme, roteirizado e dirigido com louvor por Wolfgang Becker (com o auxílio na concepção do roteiro de Bernd Lichtenberg). No fim dos anos 80, Alexandre Kerner (Daniel Brühl) é o típico jovem dinâmico, na ebulição sexual e no determinismo comportamental. Ávido, faminto e angustiado por mudanças, vai às ruas para lutar pela queda do Muro de Berlim. No protesto contra o regime instalado na Alemanha Oriental é preso pelos policiais opressores. Sua mãe, cidadã ativista e politizada, Christine Kerner (Katrin Sab), com quem mantém um forte laço e elo materno, passa mal e, num ato súbito conseqüente, entra em coma devido a um forte ataque cardíaco. Durante oito meses, imersa num completo estado vegetativo perdurável, tudo se transforma ao redor. Ao acordar, o Muro caiu, a Alemanha Oriental se desintegrou e Alexander compreende que o coração (e a alma também) de sua mãe não está preparado para assimilar tantas mudanças ocorridas em tão pouco espaço de tempo. É aí que a atmosfera do roteiro bem construído se fortalece: Christine desperta num novo mundo, sua cidade, Berlim Oriental, ganhou novos contornos, tudo evidentemente modificado. E, assim numa forma de proteger sua mãe enferma de prováveis abalos emocionais e fortes emoções que possam possibilitar uma piora no seu quadro instável, Alex luta para manter uma ilusão ao seu redor. Como as mudanças foram muito gritantes, e extremamente conflitantes com a ideologia a qual a mãe defende, ele decide por poupar a mãe e criar em torno dela uma outra realidade, onde nada aconteceu e a Alemanha Oriental continua a mesma de antes de seu infarto. Temendo que a excitação causada pelas drásticas mudanças possa lhe prejudicar a saúde, decide esconder-lhe os acontecimentos. Enquanto a Sra. Kerner permanece acamada, Alex não tem muitos problemas, mas quando ela deseja assistir à televisão ele precisa contar com a ajuda de um amigo diretor de vídeos. É aí que ele recorre a artifícios, jogos de manipulação e toda uma criatividade para mantê-la afastada da atualidade real.

O ótimo roteiro demonstra o embate entre o capitalismo e socialismo, ou mesmo entre a utopia e a realidade, a fronteira da realidade com a ilusão intensificada, entre a verdade e mentira. Quando Christine volta do coma, a Alemanha Oriental não existe mais, nem o muro de Berlim, nem o socialismo e nem o Café de marca Moca. No lugar, existe apenas a forte Alemanha Unificada, campeã da Copa do Mundo de 90 e capitalista. Preocupado, Alex não revela nada sobre a realidade, decide manter as aparências provocando a ilusão à mãe. Reconstrói no apartamento familiar todo o cenário da Alemanha Oriental, antes da queda do Muro. Como manter a farsa perdurável? Estaria ele prejudicando mais ainda a saúde da mãe? Até que ponto a mentira pode ser questionada? A farsa, à medida que ganha novos adornos, progride insustentável. Alex recruta familiares - inclusive sua irmã - além de amigos, todos tentando cercar de cuidados e mentira compulsiva ilusória o universo manipulado de Christine. Tudo é motivo para manter o coração dela brando - e o que poderia ser mais chocante do que a queda do muro e o triunfo do capitalismo, em seu amado leste alemão? Ainda que tenha receios, peso na consciência e certa fragilidade - Alex permanece na mentira incondicional. Muda embalagens de produtos industrializados, inventa e grava vídeos com o amigo para exibir à sua mãe - para preencher brechas do dia-a-dia da recente instalação do capitalismo efervescente que se mantém no seu país. Estes vídeos produzidos com falsas notícias condicionam a ilusão permanente - é tocante a maneira como Alex tenta cuidar, zelar e manter sua mãe alienada da realidade modificada do mundo - até que ponto a própria percepção dela se manteria intacta e preservada?

A construção do roteiro permite entender as motivações de Alex, bem interpretado com boas nuances psicológicas por Daniel Brühl. Seu personagem é cativante, além de humano sincero, reflete alguém extremamente criativo - além de demonstrar uma sexualidade cheia de febre por seu objeto de desejo, Lara (Chulpan Khamatova) - garota que conhece e logo se apaixona e tem tesão. Com ela, há uma boa sintonia sexual e ambos tornam-se mais que amigos, dividindo este mundo particular. Um filme que mescla o tom do melodrama com bom humor ácido-irônico e tragicômico, prescrevendo situações sobre consumismo, relação de mãe e filho, dificuldades com transformações sociais que refletem em deslocamento individual. É o filme que retrata a sociedade capitalista pela ótica do consumo, da ilusão de ordem e de progresso e de como isso fragmentou a Alemanha Oriental. Transforma a dor, o desconsolo humano e o descontrole em pura poesia. A criação do mundo paralelo de Alex para sua mãe determina o tom emocional do filme, evidentemente.

O filme mostra como o ser humano crê nas imagens transpostas nos recursos áudios-visuais - televisão e cinema - e, assim, permitem-se às manipulações concebidas por estes artefatos. Imagens feitas para dar realidade a um mundo arbitrariamente falso? Decerto, a mídia induz e tem poder influenciador sobre as pessoas, determinando comportamentos e até fomentando a percepção de cada um. Até que ponto a verdade é falsa? E o falso pode funcionar como veracidade? Seria o filme um elogio ao socialismo? Àquele tido como ideal e humanista libertário? O longa é recheado de diálogos pontuais sobre questões de ordem prática que advêm da implantação de um novo regime. Direção de arte, fotografia e boa trilha sonora de Yann Tiersen têm coerência com a narrativa. Aqui jazem críticas ácidas ao motor do consumismo, às perdas da noção de individualidade proporcionada por mudanças políticas. Belíssima abordagem cinematográfica de verdade e inteligência que produz um manancial de emoções reflexivas.

Good Bye Lenin! (2003)
Direção de Wolfgang Becker
Roteiro de Bernd Lichtenberg e Wolfgang Becker
Com Daniel Brühl, Katrin Sab, Florian Lukas, Chulpan Khamatova

28 opinaram | apimente também!:

Jardel Nunes disse...

Um grande filme sem dúvida, olhei a um bom tempo e até hoje me lembro perfeitamente da cena em que aparece uma bandeira enorme da Coca-Cola na janela...
Tenho que assistir de novo.

Abraços

Anônimo disse...

Muito instigante, meu caro!
Parace-me muito interessante essa ideia de manter uma (ir)realidade, um "mundo" já passado...

Abraço,
Jefferson.

Back Room disse...

Parte de uma premissa original, uma nova forma de pegar na queda do bloco comunista.

Daniel Bruhl, o mise-en-scéne, Yann Tiersen... tudo irrepreensível.

É um filme que, além de valioso testemunho histórico, nos deixa com a sensação que cumpriu tudo a que se propôs. Bravo.

Marcio Melo disse...

Lindo, emotivo e por horas bastante divertido, mais uma pequena pérola do cinema alemão.

Bartolomeu disse...

Já tive a oportunidade de o ver, é um belo filme!

Abraço

Rafael Cotrim disse...

Grande filme que eu já tive o prazer de assistir e tenho outro prazer em recomendar tb.

Muito bom.

Unknown disse...

vou colocar na lista, bom comentário,

abraço

Talles Azigon disse...

eu ainda não vi esse, mais tenho visto alguns daqui

e são sempre maravilhosas indicações.

tem uma promo lá no blog e gostaria que você participasse

Tania regina Contreiras disse...

Excelente a abordagem do filme, registrado, quero assistir.

Beijo,
Tânia

Wenndell Amaral disse...

Hunm. Bela resenha crítica. Memorável. E este é um dos meus filmes prediletos.

Paulo Alt disse...

Cris ,

Geralmente eu diria que fica difícil eu comentar sobre o filme sem tê-lo visto. Hoje eu percebi o quanto esse argumento é burro.

Meu comentário podia parar ali só, mas não aguento. O texto tá perfeito. O primeiro que não vejo nenhuma dificuldade pra comentar.

Quero muito ver e tenho ele gravado aqui. Na verdade o nome do filme tinha me instigado, é uma parte histórica que gosto de estudar. Acho que nem sabia muito da sinopse. Só agora percebo o quanto é legal questionar essas idéias. Sou um daqueles que dizem que a mídia não influencia [mesmo estudando uma área da própria]. Quem sabe depois de assistir tenho outra visão? Pelo menos foi isso que seu post trouxe pra mim e me deixou atento. De verdade.

Heeey,
;]

Quando eu assistir me lembra de voltar e comentar de novo???

Abraçãoo meu Amigo ^^

Bartolomeu disse...

Ola novamente,

e porque tudo tem uma razão de ser, nomeei-te para um premio no meu blog.

Passa por lá! :)

Abraço

Kamila disse...

Fábula humana política e uma bela história de amor porque fala do mais belo amor de todos: aquele em que nos sacrificamos pelo bem daqueles que mais amamos. Isso é amor verdadeiro.

Alan Raspante disse...

Ah, esse filme é ótimo!
Ele consegue mesclar político, história, drama, comédia e um roteiro genial, fica até difícil que tudo isso possa ser encontrado neste filme!
Ótima resenha!
PS: Depois de muito tempo, você resenhou um filme que eu já tinha visto! HÁA!
UHAHSUAHSHUAU
Abs =)

Davi Coelho disse...

Uma excelente recomendação mesmo.
Eu gosto muito da trilha também.
Ouço sempre.
Abraço, Cristiano :)

Rodrigo Mendes disse...

Eu quero mandar um recado para o Daniel Brühl:
"Quem vai querer mandar um recado para a Alemanha?" rs!

Este ator é o futuro do cinema Alemão. Também está soberbo como o soldado Zoller em Bastardos Inglórios!

'Lenin' é o filme mais bem feito, criativo do novo cinema alemão. Um grito de um país sufocado durante décadas. A fábula mais verossímel que já videei!

Abs!

Amanda Aouad disse...

Assim como o Jardel aí em cima, a primeira coisa que me vem a cabeça ao lembrar desse filme é ele tentando esconder a marca da Coca-Cola na janela. hehe.

O roteiro é muito inteligente, com uma direção caprichada. Uma declaração de amor de um filho para uma mãe. Independente de ideologia política. Gosto muito.

bjs

Leco Vilela disse...

Tu consegue me explicar e retratar o filme com a mesma dedicação e força em 3 paragrafos? digamos ... 1500 toques?

Anônimo disse...

Adorei o blog... impecável... útil... bem feito... seu post, claro e de fácil compreensão... É, gostei muito.
Você bem que poderia me visitar e tomar um chocolate comigo... me daria muito prazer...
Beijos...
To te seguindo de agora em diante...

Anônimo disse...

Rapaz,vc sabe que odeio seus textos né?

HAHAHHAH

noooossa senhora,muiiito bom texto,faz juz ao bom filme abordado!

Gian Le Fou disse...

Ótim filme. Seu blog está excelente, parabéns!

Bj.

Edson Cacimiro disse...

Sempre fui louco pra ver esse filme e nunca consegui.

Mirella Machado disse...

Ótima crítica, ainda não o vi por completo toda vez que passa na tv já pego no final. A história é muito interessante, retrata bem o amor entre mãe e filho e ayé que ponto um filho pode ir pra vê-la "feliz" mesmo que seja numa farsa, fiquei mais interessada em vê-lo (inteiro dessa vez) agora depois de ler sua crítica. Bjos Blogmurus

Obs: Obrigada por ter ajudado lá no blog

Tiago Britto disse...

Esse filme é simplesmente sensacional...um clássico e um dos melhores que já vi!

forte abraço

Mayara Bastos disse...

Gosto bastante do filme, por que, além de contar mais sobre o que a Alemanha estava passando, mostra também até que ponto pode chegar o amor de um filho por sua mãe. ;)

Rodrigo disse...

Não acredito que o filme foi feito para fazer algum tipo de apologia à ideologias políticas. É, acima de tudo, um filme humano. Sobre a situação de ordinárias pessoas que, após o fim do socialismo, se viram desamparadas por toda uma ética defendida - ou não. Daniel Bhrül é magnífico. Com certeza, um dos melhores atores que a nova safra está produzindo.

Cristiane Costa disse...

Oi Cris, tudo bem, meu amigo lindo?

Você abordou brilhantemente um dos meus filmes alemães favoritos. Eu amo Good Bye Lênin, do roteiro a todo o foco argumentativo e penso ser comovente a forma como eles equilibram questões políticas que afetam o coletivo com as questões da existência que afetam o indíviduo. A forma como Alexandre se esforça para montar o "mundinho oriental" é embutido de muito amor e acho que este amor incorporado a uma realidade familiar/maternal enfoca muito mais como ficariam as famílias alemães após a queda do muro de Berlim. O sistema politício acaba se tornando uma bandeira, uma filosofia de vida, mesmo que a pessoa não seja uma partidária, afinal a política entra na sua vida e afeta tudo ao redor, o que voce consome, como você planeja os seus projetos de vida e é impactado por tudo isso, então eu acho sublime o argumento deste filme e como ele se desenvolve. Para mim, um filme 5 estrelas e 100% alemão, capaz de abraçar as grandes questões universais.

Beijo, Cris!

MaDame!

Lorena Morais disse...

Esse filme é demais. Nos faz ter uma reflexão e fazer uma analise da propria Alemanha e do capitalismo.
Também lembro do banner da coca-cola. O filho fazia de tudo para que a mãe não visse, porque se não era o fim.
Valeu, Cris. A leitura ajudou na construção da minha resenha. Beijoca

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