Sensibilidade Sexual

O cinema exerce a possibilidade de mostrar a exploração do preconceito homossexual, através da reprodução das tragédias da realidade para a esfera do âmbito da narrativa cinematográfica. Meninos Não Choram é um tocante e sensível trabalho que trata a representação do transexualismo. A obra conta a verdadeira história de Teena Brandon (Hilary Swank), uma garota que tem conflitos de identidade sexual e, em função disso, decide se vestir como homem - troca a sua identidade para Brandon Teena - para dar vazão aos seus desejos, anseios e vontades intrínsecas. Para evitar o preconceito e negação da sociedade, adota a nova identidade como forma de se sentir aceita. Assim, assume seu lado masculino, passa a agir como homem e galanteia garotas: beija mulheres, envolve-se com amigos homens, adota o comportamento masculino. Quando descobrem sua verdadeira sexualidade, Brandon foge para uma pequena cidade do Nebraska e lá acredita que terá liberdade para afirmar sua identidade sexual. Lá conhece um grupo de aventureiros rebeldes e acaba-se apaixonando por Lana (Chloë Sevigny), integrante dessa turma. O que fazer para que ninguém desconfie de quem realmente é? Até que ponto é válida uma mentira em função de anseios próprios? A sexualidade corresponde ao que o corpo expressa? A diretora Kimberly Pierce concebe uma íntima trajetória de uma jovem que joga com sua imagem e sexualidade, conquistando outra identidade. Como entender que a alma não corresponde o que o corpo exterioriza? Como driblar os preconceitos que insistem em prevalecer diante da sociedade predatória? O filme expõe essa discussão de uma jovem em busca da própria aceitação de sua sexualidade. O cinema, assim como outros ramos da arte e da comunicação, tornou-se um meio importante na construção de identidades. Mais do que um âmbito de construção de identidade na contemporaneidade, o cinema também reflete a realidade social, contribuindo para o exercício da crítica e da problematização social.

Em Falls City, Brandon consegue se passar por homem - sem que ninguém, inicialmente, desconfie. Com sua postura masculinizada, gestos e roupas de homem, constrói uma verdadeira farsa para si e para todos com quem convive. Transvestida de garoto, relaciona-se socialmente. Então, ganha a amizade de todos - inclusive por Lana, por quem passa a nutrir um absurdo desejo e corresponde afeto, carinho. O tesão irrefreável prevalece a todo tempo, ainda que a verdadeira identidade de Brandon pode ser descoberta rapidamente, visto que ela tenta de todas as formas omitir seu passado e mascara-se comportamentalmente. E o roteiro esmiuça essa integração dessa jovem que se condiciona a uma vida que se direciona à ilusão - Brandon sabe que seu segredo pode vir à tona, mas não consegue desvencilhar-se de suas vontades, atitudes e mentiras. Passa a namorar Lana, imerge no cotidiano da família dela. Sua espontaneidade, personalidade e comportamento conseguem atrair a todos - além de exercer um fascínio hipnótico em Lana. Então, o namoro ganha força a tal ponto que Brandon não pensa em retornar à sua cidade de origem. Como fazer com que ninguém saiba sua verdadeira identidade feminina? A problemática invade quando o segredo vem à tona em proporções trágica, invade a todos e tudo é colocado ao fogo. Enquanto as mentiras corroem o universo ilusório de Brandon, o filme culmina no desespero dramático - recheado de cenas tensas, fortes e densas.

Sem estereótipos, o roteiro de Pierce é uma profunda imersão psicossocial, insere a quebra de tabus. Ademais, mostra como a personagem incomoda-se com sua condição. Diversas performances são realizadas por Brandon, num jogo de esconder o que é visível e correspondente ao feminino, e sobressaltar alguns elementos do corpo masculino: Seus seios são enfaixados, o ciclo menstrual é ocultado por um absorvente interno, na tentativa de eliminar qualquer vestígio do fluxo menstrual. Veste uma cueca, que é preenchida com uma meia para dar o volume semelhante ao de um pênis - além de ter sempre em sua mochila um artificial. O filme pauta a condição de um ser humano que se auto-indentifica com distúrbio e crise sexual - inclusive, ela não se vê como lésbica. Mas sim, como um homem. Encara seu sexo biológico com angústia, desordem, aflição. É tanto que nos atos sexuais com Lana, esconde seu corpo para que ela não veja - então, usa próteses de pênis para proporcionar prazer à companheira. Jamais se permite ser tocada, nota-se em Brandon a negação do próprio corpo feminino, não se aceita. Não há possibilidade de fazer uma avaliação e posterior cirurgia, pois não tem condições financeiras. Então, vive numa eterna disputa com seu corpo sexualizado. Ela, irremediavelmente, oculta todo e qualquer traço cultural que faça referência à feminilidade. No esforço pela aceitação, age submetida ao sistema social de machismo, onde o elemento da virilidade é uma concreta ânsia. É durante este período que Brandon passa a atuar mascarando sua identidade real, assumindo o jogo de duplicidade física e afetiva. O grande fio de condução da história é a dramática negação dela em aceitar sua verdadeira sexualidade diante de um ambiente preconceituoso. Sua negação arriscada reflete o medo e ingenuidade que a garota parece sentir frente a um mundo cruel e bruto, que evita qualquer explicação ou entendimento.

É um filme que fere por ter uma linguagem crua, sincera e bem emocional - os personagens são delineados com nuances psicológicas, comportamentos bastante realistas e tudo é bem tangível. Hilary Swank compõe uma personificação interpretativa avassaladora, impressionante e intensa - o misto da delicadeza, da maneira como com um olhar caracteriza toda a personalidade de Brandon, é um assombro. A atriz, com sua androgenicidade, linhas marcantes e tom de voz, incorpora a personagem com puro talento caloroso. E Chloë Sevigny exerce um domínio irrepreensível, ao seu lado - a química sexual é evidente, em cenas de beijos sensuais e transas quentes. A nudez erótica é externada no corpo de Sevigny, bem como na língua de Swank percorrendo teus contornos. O filme também é uma crítica à juventude rebelde, sem perspectivas, onde o sentido deslocado ganha contornos sobre os próprios sensos de caráter - os personagens, amigos de Lana, formado por John (Peter Sarsgaard), Tom (Brendan Sexton III), Kate (Alison Folland) e Candace (Alicia Goranson) representam estes indivíduos dotados de preconceito e transgressão. Neurótico-moralistas, são símbolos da própria sociedade que ofende, agridem e ferem com artifícios brutais pessoas homossexuais. É doloroso, é até melancólico, mas serve como um grito à sociedade, ainda, limitada em certos rigores de ignorância, egoísmo e preconceitos incondicionais. A homofobia é um argumento do roteiro também, pois mostra como Brandon sofreu na pele a barbaridade do grau de violência homofóbica presente na idelogia machista. É absurdo como inúmeros seres manifestam suas atitudes preconceituosas com doses cavalares de agressividade em espiral crescente de violência. Pungente filme que verbaliza sobre a crueldade de mundo, mas também demonstra uma pessoa que sabia o valor de amar.

Boys Don't Cry (EUA, 1999)
Direção de Kimberly Peirce
Roteiro de Kimberly Peirce e Andy Bienan
Com Hilary Swank, Chloë Sevigny, Peter Sarsgaard, Brendan Sexton III, Alicia Goranson, Alison Folland

44 opinaram | apimente também!:

Rodrigo Gerace disse...

Fiquei pensando aqui:

"A sexualidade corresponde ao que o corpo expressa?"......

ótimo post :-)

FLAMES (Mariana e Roberta) disse...

wow...adoramos o seu blog :)
Desculpe a intrusão mas gostámos mesmo muito

se quiser passe pelo nosso também e aproveite para participar no nosso passatempo.

Continue o óptimo trabalho!

Luiz disse...

Parabéns pelo belo post. Este filme foi uma das obras que mas me fizeram chorar quando assisti e tinha apenas 17 anos...por meio dele percebi que meninos também choram. Abraço!!!

Valéria lima disse...

Bem interessante!

BeijooO*

lea disse...

Essas resenhas que tu faz, sobre os filmes, sao tao intensas que eu tive a sensação de ter assistido o filme inteiro,e ao mesmo tempo fiquei curiosa pra assistir. bjos otima segunda

M. disse...

Hilary Swank é realmente uma grande atriz. Os papéis masculinizados ela faz muito bem. Eu já havia ouvido falar sobre este filme, mas nunca assiti. E lendo o seu texto maravilhoso como sempre, me recordo de que devo assiti-lo. Taí: mas um que anotei em minha lista. Um abraço e ótima semana.

Anônimo disse...

Você por muitas vezes se supera em suas resenhas com tamanha paixão e percepção do filme que está descrevendo.

Excelente

abs

Serginho Tavares disse...

Meu irmão gostava tanto desse filme mas tanto que tinha ele gravado e revia n mil vezes!

Dan disse...

Lindo filme, ótimo texto! mto bom garoto!
abraço e boa semana!

Catiaho Reflexod'Alma disse...

Passando pra te ler
e
adorando o post.
Que materia bem escrita.
Bjins entre sonhos e delírios

O amor é um mistério sem fim, já que não há nada que o explique.
Rabindranath Tagore

Amanda Aouad disse...

Muito bom o texto, acho que nesse você se superou. O filme é cru, como você diz, mas um turbilhão de emoções, sensibilidade, incongruências humanas. Hilary Swank dá show. Gosto bastante.

P.S. Você falou de Do começo ao fim lá no CinePipocaCult, mas eu não apenas já falei desse filme na época do lançamento, como você comentou no post. hehe. Veja lá nas buscas...

bjs

Danilo Castro disse...

Assisti há pouco tempo esse filme... É do tipo que te estrangula e te sensibiliza...

Hugo de Oliveira disse...

Tenho esse filme aqui..,é bom.

abraços

Edson Cacimiro disse...

Maravilhoso!

Anônimo disse...

Me surpreendeu, um filme de troca de sexo que não se trata de comédia, realmente um achado, será que com disfarces é mais fácil se esconder dessa sociedade? Prefiro sem elas. Bjuu!

Kamila disse...

Acho este filme simplesmente lindo. Especialmente a forma como ele fala sobre alguém que teve tolhada a sua liberdade de ser aquilo que realmente era. As atuações de Chloe Sevigny e Hilary Swank merecem todos os elogios!

Emmanuela disse...

Eu fiquei estarrecida quando assisti a este filme, uma ótima sacudidela social!! Parabéns pelo texto mais uma vez.

História é Pop! disse...

Filme simplesmente intrigante.
Acho que a busca pela atriz ideal para interpretar o personagem de Teena Brandon que levou quase três anos valeu a pena, Hilary Swank está perfeita.

Mirella Machado disse...

Ah, agora entendi o por quê de vc ter ficado indignado comigo rsrs. O filme parece ser mesmo ótimo, adorei sua rsenha mais uma vez com aquela intensidade que só seu blog parece ter. Vou procurar mesmo esse. Bjos

Marcio Melo disse...

Mais um daqueles pequenos 'clássicos'.

Vi a muito tempo e naquela longíqua época que eu nem era tão aficcionado por cinema, eu já tinha adorado.

O Maldito Escritor disse...

A cena do estupro em cima do capô da caminhonete é terrível... Não consigo nem pensar!

Anônimo disse...

"Nosso desejo não tem lei e o resto é pura ilusão"

Wally disse...

Mais um baita texto. Acho que este é um dos melhores filmes sobre este delicado tema... e a performance de Hilary Swank é extraordinária.

Adriano Mariano disse...

Hey, thanks pela visita!

Obrigado pelo elogio, e nem preciso dizer que seu blog é fantástico².

Apareça mesmo por lá, seja bem vindo. Café? rs.

Robson Saldanha disse...

Esse longa me chama muito a atenção. Quero muito conferir!

Anônimo disse...

Uma obra decididamente forte.
Chorei litros.
Acredito que seria um ótimo filme a ser mostrado em palestras para os jovens.

Parabéns pelo sucesso do blog.
Beijos!

Jân Bispo disse...

já haviam me indicado esse filme e ragaram muito a seda sobre ele, porém a pessoa não é das melhores consultoras de filmes, lendo sua crônica me interessei em conferir, a história já me parecia interessante, mas agora deu animo para abrir a mente e deixar que o verdadeiro sentido chegue! rs.

Anônimo disse...

Caramba, Cris, como você escreve bem! Mais um texto maravilhoso!

E sobre o filme, eu nunca suspeitei que a trama fosse essa... Talvez porque vivo confundindo esse com "Sobre Meninos e Lobos", do Clint Eastwood, não sei por quê...

Valeu, cara, até a próxima, e muito obrigado por ler meu blog! Tá meio desatualizado, mas ainda hoje sai dois cafézinhos fresquinhos com uma crítica! :-) Abraços, e se cuida!

Lê Fernands disse...

esse filme é uma lição.
gosto muito!

Rockson Pessoa disse...

Olá Cristiano,

Interessante teu post! A verdade é que há sempre um "todo não dito" acerca das coisas que expressam um ponto de vista. Afinal não detemos a verdade e muitas vezes falamos de mundos que fogem ao nosso cotidiano.

Belo post e já te sigo!!

Abraço

Mayara Bastos disse...

Que vergonha a minha! Ainda não assisti esse filme, mas a curiosidade ficou maior depois do seu texto. ;)

lea disse...

entrei, espiei, nao vi postagem do dono do blog, volto outro dia, bjos

Unknown disse...

O filme é muito bom! E a Hilary Swank está excelente. Porém, no Oscar, achei que a estatueta deveria ter ido para a Annette Bening, em "Beleza Americana".

Abs!

TH disse...

Hillary Swank é dessas aleluias talentosas que de tempos em tempos aparecem pra nos salvar.
É dela e do roteiro fantástico o sucesso merecido dessa obra

Parabens, uma vez mais!

Brasil Desnudo disse...

Olá, bom dia!
Tanto a performance de Hilary Swank, como sua narrativa em seu texto, foram perfeitas...
O filme eu o vi há muito tempo já, mas seu texto me fez lembrar de cenas, mas da forma como você narrou, principalmente demonstrando a dúvida do Ser, eu seu próprio Eu, excluído-a na negativa preconceituosa da sociedade, foi o que mais admirei...
Meus parabéns, belo blog e , excelente matéria..

Abraços

Marcio RJ

Elton Telles disse...

Um belo filme e sua análise está à altura. Mais do que a história em si, os sentimentos e a fidelidade de Brandon para Lana já é suficiente para conferir esse belo retrato verídico. E Hilary Swank some na personagem, fantástica! E destaco também a atriz que interpreta a mãe de Lana, cujo nome não sei qual é rs. Sensacional!


abs!

Xavier disse...

Estou com esse filme na minha prateleira ha meses e até agora não assisti, acredita? Adoro filmes com a Hillary Swank. Tenho impressão que vou chorar litros com esse filme!

Bjo!

Vitor Silos disse...

Ótimo filme. Hilary Swank está maravilhosa, muito justo seu prêmio.

Abraço

Vitor Silos
www.volverumfilme.blogspot.com

Clenio disse...

Quando assisti a "Meninos não choram" pela primeira vez eu não gostei, talvez pela crueza excessiva da fotografia e do roteiro - sinceramente eu quase podia sentir o cheiro de cerveja vindo da tela.
Quando o revi, no entanto, ele finalmente me encantou, justamente pelos motivos que antes haviam me incomodado.
É uma história forte, contada sem firulas, sem pretensões à beleza plástica que iria enfraquecê-la.
Acho o trabalho de Peter Sarsgaard nesse filme extremamente subestimado. Ele me assusta, de verdade, e merecia no mínimo, uma indicação ao Oscar.

Grande abraço
Clênio
www.lennysmind.blogspot.com
www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com

Bárbara disse...

Ainda não assisti o filme, mas depois que li foi como se tivesse assistido. Ótimo post!

Saulo S. disse...

Um dos filmes mais sensíveis que já vi! Tudo funciona brilhantemente bem, a atuação da Hilary Swank esta entre uma das melhores do cinema contemporaneo!
Seu post esta ótimo, parabens!

Gustavo disse...

Difícil discordar.

O trunfo desse filme magnífico e poderoso está no seu tratamento sem condescendências, sem falso "dó" enfim, sem preconceito mascarado de "olhe para mim discorrendo liberalmente sobre um tema polêmico!!!". É um estudo de personagem franco, empático e cinematograficamente absorvente.

RENATO disse...

Esse filme é genial. Uma lição de vida. Uma aula de como o ser humano pode ser egoista, insensível e cruel.

Rhayane disse...

sou louca pra assitir eese filme.Ja ssisti o trailer n youtube e isso só despertou mais a minha vontade de assisti-lo!!
Não podia passar por aqui sem comentar ;)

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