Perversão Sexual?

O ser humano pode provocar o poder da perversão através da escrita? Eis que a literatura, em sua verve mais ousada com dotes erotizados, há por arder de requinte de luxúria que proporciona um orgasmo para quem lê. Contos Proibidos do Marquês de Sade ficciona uma inquietante trajetória real de um homem que abalou as estruturas da sociedade por expressar sua criatividade numa escrita pornográfica. A produção, dirigida com talento por Philip Kaufman, com roteiro de Doug Wright, retrata diversos contextos presentes na sociedade francesa do final do século XVII, no período de governo monárquico de Napoleão Bonaparte: a euforia dos rigores tradicionais, a falsa moralidade e, através do personagem que o filme articula sua narrativa, a evidência da sexualidade que desestrutura os ditames da religião. A história enfoca os últimos anos de vida do escritor infame Marquês de Sade (Geoffrey Rush), encarcerado num sanatório em Charenton por desafiar a autoridade da Igreja quanto a do Estado, por conta de seus escritos recheados de citações eróticas. Considerado como uma afronta à sociedade por criar textos além do limite da sordidez pornográfica, foi retirado da esfera social para não mais chocar todos com seus textos e poesias de sensos libidinosos. Isolado no sanatório, o sexual prolífero Sade não desistiu de escrever - auxiliado por Madeleine (Kate Winslet), uma camareira que mantém um elo de forte atração e amizade, consegue publicar seus contos pervertidos fora do local que se encontra. Através de sua ajuda - ela entrega os textos a um editor que direciona a um prelo - o Marquês consegue manter sua literatura sexual na atividade. Rapidamente publicados, seus textos atraem o povo que aprova com tamanha euforia - além de ferir a pseudo-moralidade da Igreja que se rebela contra ele, irada. Como fazer com que essa sexualidade literária atenue de vez? É então que o Dr. Royer (Michael Caine), um controverso médico e de intenções duvidosas, entra em cena para impedir que o Marquês continue espalhando sua obscenidade. Além disso, a trajetória de sexualidade literária do Marquês há de ser repreendida pelo jovem padre Abbe Coulmier (Joaquin Phoenix) que, por sua vez, esconde dúvidas e desejos ocultos.

O filme mostra como a literatura tem o poder de causar catarses, mudanças e também reflexões - é capaz de lubrificar as mentes das pessoas com artifícios do prazer, induz e aflora a sexualidade, instiga com a sensualidade. Corrompe, fere e fascina. E mostra também como as pessoas são propícias às influências da leitura – de como, às vezes, guardam segredos dentro de si mesmas e, ao ler, conseguem ter prazer pelo simples fato de se identificarem com o que está idealizado no texto. Por isso, muitas pessoas que se mascaram socialmente, com a carapuça da pseudo moralidade, quase sempre, dentro de quatro paredes, apresentam um lado sádico e pervertido sexualmente - por sinal, o termo "sadismo", foi criado em função do próprio Marquês de Sade de acordo com suas ideologias sexualizadas. Qual conceito da imoralidade? Será que em Sade existia, de fato, um modelo de perversão? Ou ele apenas narrava o que se escondia por trás das mentes e das vidas de cada pessoa? Será o sexo - na sua amplitude e estranheza - algo a ser segredado sem ser exposto com tanta clareza? Sade, obviamente, mostrava a sociedade como ela era - pessoas que traiam, sujeitava-se às práticas secretas de luxúrias, aos sexos furtivos e que consumiam - como ainda hoje o fazem - o desejo pelo próprio orgasmo. Sendo ele através de práticas sentimentais ou não. Afinal, ainda que nem todos acreditem, sexo pode ser dissociado do senso de sentimento - talvez, uma consequência da paixão?

E, no filme, o irônico e melodramático, por vezes doloroso, roteiro exerce uma reflexão sobre um homem que provocou todo um abalo social devido à sua mente que elucubrava tormentos da sexualidade nas suas mais variadas formas. Os contos de Sade faziam sucesso pelo simples fato de serem tangíveis, reais e sinceros: eram personagens como qualquer um, nos mais absurdos segredos da intimidade, dos desejos inconfessáveis. Em meio à Revolução Francesa, ele reformulou sentidos e quebrou tabus ao explorar a sexualidade na sua verdadeira natureza humana, sem artifícios da formalidade, ainda que seu estilo não seja totalmente vulgar - apenas, ele não tolerava pudores. E como um poeta não convencional pôde, durante tanto tempo, permanecer preso só por ter escrito sobre o lado negro humano? A sociedade é predatória, não se pode compreender. Até que ponto se pode conter a liberdade de expressão? Marquês de Sade teve que enfrentar a todos - é doloroso vê-lo, privado do ato de escrever, ter que usar de métodos extremos para não desistir. Ao ter sua pena retirada, escreve com o vinho; retirado o vinho, escreve com o próprio sangue. O sufoco atinge o ápice diante da total privação: sem qualquer instrumento porventura útil à escrita, usa as fezes para escrever seu último conto nas paredes da masmorra onde fora deixado. Não há nada que vete a veia literária de um artista. A escrita era como a liberdade, Sade tinha o tesão em compartilhar seus textos eróticos com um público ávido pela comunhão da obscenidade sexual. Mas, seriam seus textos obscenos demais para serem lidos? Sade escreveu sobre os apetites mais primitivos humanos, além de desmascarar todos os limites sexuais. Com uma prosa tão incendiária, conseguiu também ferir a sociedade acostumada nas tradições da hipocrisia.

Além de costurar a ousadia da infâmia sexual através de um personagem politicamente incorreto - o filme desnuda sensos da artificial moralidade mascarada ao colocar personagens em conflitos com seus próprios desejos e obscuridade. O tema do filme é sensual, agressivo e até cruel. Há o padre Abbe que nega seus desejos e anseios terrenos sob as próprias vestes da batina que oculta seu tesão pela camareira Madeleine - como estar dividido entre o amor e as próprias imposições que a fé aprisiona?; Madeleine representa a feminilidade no filme, permeia entre o fascínio do prazer em ler as perversões literárias do Marquês e inibe a atração que nutre pelo padre; o médico Royer que tem um vício em torturar seus pacientes e condenar a expressividade do Marquês, mas que dentro de sua casa esconde seus hábitos sexuais contra sua esposa menor de idade. O filme ainda prisma pelas necessidades dos desejos carnais e das próprias vontades - mas, é nítido o quão ansiosos por sexo acabam sendo todos os personagens no enredo. O tom desbotado sutilmente da fotografia de Rogier Stoffers é um instigante aspecto visual; figurinos competentes e uma trilha sonora de Stephen Warbeck bastante marcante conceituam uma boa atmosfera à película. Mais que um incentivador da literatura sexual, Sade foi um libertário promíscuo a favor da euforia dos vícios do corpo. Um pequeno filme que serve como manifesto sobre o ato de liberdade de expressão – exemplo de reflexão sobre a moralidade e mostra como, às vezes, nem todo prazer há de ser convencional.

Quills (EUA, 2000)
Direção de Philip Kaufman
Roteiro de Doug Wright
Com Geofrrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix, Michael Caine, Stephen Moyer

20 opinaram | apimente também!:

Natalia Xavier disse...

Adorei esse texto Cris! Lembro que quando eu assisti esse filme eu era novinha ainda e fiquei meio chocada com a história do filme. Assistir agora, me daria uma percepção beeem diferente.

Gostei do ponto que vc citou indagando sobre o fato de que os contos do Marques de Sade talvez ser aquilo que parte do inconsciente desejo de nós mesmos. Além de toda a tabu e hipocrisia que rondava naquela época (hoje que as coisas são mais explicitas, nem tanto) dos próprios padres praticarem atos libidinosos pregando um falso moralismo.

Lembro da cena do Marques escrevendo com sangue e depois com fezes. Apesar de soar insano, o que explicaria de certo modo ele estar preso, é realmente algo curioso o desejo de poder encontrar liberdade exprimindo nas palavras seu desejo de expressão e imaginação.

Quero voltar a ver este filme =P

Grande bejo!

Anônimo disse...

A sociedade é hipócrita desde sempre, mas o aspecto sexual sempre desperta mais curiosidade. Pelo menos a minha.

Por isso, por tudo que acabei de ler neste post chego à conclusão de que preciso ver esse filme urgentemente. E ler os contos do Marquês de Sade também, claro.

Hugo disse...

A atuação de Geoffrey Rush é otima.

Abraço

Julyana ツ disse...

A igreja sempre tentou fazer com que o homem visse seus desejos básicos como fonte de pecado...
Que fazer se a escrita pode nos transportar para onde bem entender?






;*

Unknown disse...

Acho que Sade tocou num tabu que, veja só, é escandaloso até hoje - quanto de perversão sexual existe em cada indivíduo? Há de se aplaudir tamanha cretinice, especialmente pela época. Por outro lado, fica aquela pergunta básica: "mas os desejos sexuais não são particulares mesmo e devem permanecer guardados dentro da cabeça de cada um"? Excepcional atuação de Rush, Winslet e Joaquin competentes como sempre. Desde "Ligações Perigosas" um filme do gênero não me envolvia tanto.
Estou de blog novo, Cris. Atualize sua blogroll quando puder: www.obradoretumbante.wordpress.com

Ebrael disse...

CA arte é um espelho invisível para as mentes.

Se você corta os desejos, como Hércules fazia com as serpentes da cabeça da Hydra, eles se arrombam em aberrações.

Coloque um espelho defronte e os desejos se iluminam, reconhecendo seu dono. Assim, a Besta se submete e obedece, piamente, ao herói interior de cada um.

A arte depura!

Emmanuela disse...

Ótimo!! Tomando como base seu texto, sem sombras de dúvida, este é mais um belíssimo filme da talentosa Kate Winslet. Após a leitura, fiquei curiosa.

Parabéns pelo texto repleto de sentido e sentimento.

Rodrigo Mendes disse...

Um filme excitante,quente, perverso, proibido, gostoso, sombrio, violento, romântico e lindamente fotografado e cenografado.

Tem um toque sexual no ponto sem ser muito explícito ou vulgar. As vezes fico pensando que filmes com temáticas parecidas como 'Calígula' poderiam ser assim. É mais delicioso ver uma fita dessas do jeito que Phlip Kaufman projetou.

Abs.
Rodrigo

Tullio Dias disse...

esse filme é excitante de uma maneira bem tensa. preciso rever.

kate winslet s2

Mirella Machado disse...

Ah, posso não estar muito afim de continuar em letras, mas a literatura é tudo. Você escreveu muito bem sobre as sensações que ela provocou, já faz bastante tempo que assisti a esse filme, preciso revê-lo mias do que urgente e agora com outra perspectiva naturalmente. Beijoss Cris

TH disse...

Um filme meio barra pesada. A cena da escrita com sangue e com fezes até hoje me choca - mas, antes de escatologia, depois de adulto eu percebi todo o contexto inserido. É um filme muito rico, que toca em aspectos bem interessantes e tabus intocáveis.
Louco pra rever!

cleber eldridge disse...

Esse é um filme que divide opiniões, ainda não tive a chance de assistir, mas, o farei em breve!

Anônimo disse...

NOOOOOOOOOOOSSA!

Muito bom, muito bom meeeeeeeeeeeeesmo!

Vc já apimentou "Perfume", Bê?

adoreiii

M. disse...

Oi Cristiano,

Adoro vir aqui neste maravilhoso Apimentário de A maiúsculo. Seu texto como sempre nos prende. Um abração.

Kamila disse...

ODEIO este filme... Simples assim! rsrsrss

Jonathan Nunes disse...

Não assisti esse filme ainda mas gostei tanto do texto que vou procurar e volto para dar minha opinião. Adoro a Kate Winslet ela deve estar maravilhosa nesse filme.
Vlw

Rodrigo Gerace disse...

Gosto muito deste filme. Uma das interpretações mais fascinantes de kate Winslet. Sade traz toda escatologia de sua época e a devolve para a sociedade em forma de perversão e erotismo. Gosto muito deste ideal libertino, que via subversão através do desejo. Hoje, na nossa sociedade pornográfica, nada mais atinge, vale tudo na arte pós-moderna... "Shortbus" mostra bem este vazio existencial que passamos.

Cada vez mais "finesse" seus posts! Agradáveis de ler. E com filmes bem escolhidos. Parabéns!

Elton Telles disse...

Não morri, não! Hahahaha!

tive de dar um tempo involuntário para conciliar o trabalho com a faculdade que me consumiu total esse mês. Nossa, nem respirava, mas voltarei À ativa quando meu pc sair do conserto tsc! Estou com texto pronto já =)

saudades da blogosfera e de ler as críticas e análises alheias. E adorei esse de "Quills". Parabéns, novamente. Assisti na época de lançamento - tiha uns 12 anos, portanto nao me recordo muito bem - mas arrasou! o/


abs!

Gustavo disse...

É dos filmes recentes mais fortes acerca de liberdade de expressão, e com a coragem de se ancorar num personagem não exatamente certinho para ilustrar seu caso. Não gostei taaaaanto assim, mas o filme não sai da memória, e no final das contas isso é que importa.

JhonSiller disse...

Nossa cara, esse filme parece ser bem bacana. vou procurar ver. adorei de verdade

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