Intrigas da inveja mascarada

"É preferível ser completamente enganado do que abrigar a menor suspeita". William Shakespeare é o maior conhecedor das dores humanas. O escritor externou em suas obras as tragédias do sentimento, os infortúnios, os prazeres de seres passionais. Seu texto ferve ao mostrar toda a sensibilidade de um humano que se apaixona, mas que também odeia, incondicionalmente. Baseado na obra mais pungente do escritor inglês, Othello tem a direção e roteiro adaptado por Oliver Parker que mantém toda a esfera melodramática e essência intrigante do texto original ambientado na Veneza Renascentista. O libidinoso, cruel e provocativo filme segue fielmente a poesia dos diálogos shakespeariano. A trama foca no sensual mouro Othello (Laurence Fishburne) que se apaixona perdidamente pela veneziana Desdemona (Irène Jacob), filha do poderoso senador. Ambos se casam, secretamente, contra a vontade do pai da moça. Naquela época, era contra os padrões de uma sociedade conservadora a união de um descendente árabe com uma cristã. Othello e Desdemona escandalizam a comunidade ao expor um amor tão eufórico — mas é Iago (Kenneth Branagh), um dos tenentes de Othello, que, por se sentir preterido por outro ter sido indicado ao comando, providencia um maléfico plano de vingança que trará uma crescente onda de manipulação, violência e tragédia na vida de todos. O filme arde ao mostrar uma trama perversa, totalmente ousada, num jogo envolvente de suspense através de Iago que representa a traição, a inveja descabida e o ódio humano. Toda a ardência de Shakespeare é presente neste trabalho que discute a paixão que cega, ciúme, confiança traída e incontroláveis intrigas.

O ciúme é capaz de consumir o ser humano. Providencia a sua loucura? A típica história de traição aqui encontra o ápice do desespero. O roteiro evidencia o invejoso Iago como antagonista, mas é esse personagem que dita todas as regras e estabelece a narrativa da trama — numa linguagem teatral, ele dialoga com a câmera, é o recurso adotado para demonstrar sua vilania, pensamentos e seu poder de manipular a todos. Iago nutre um ódio profundo pelo mouro, uma obsessão incontornável, exímio dissimulado que oculta uma obscura personalidade. Em seu plano de vingança, arquiteta a destruição do seu objeto de inveja, Othello: o homem que ele não é, mas quer ser. Qual razão da inveja? Como alguém nutre um ódio ao outro? Iago almeja tomar o posto ocupado por Othello, mas sua inveja o consome também por ver o amor experimental do mouro com a jovem branca da alta sociedade, Desdemona. Ao se mostrar um servo leal amigo, manipula todos os personagens com o intuito de provocar a desordem, a razão de destruir a soberania de Othello. Faz com que o mouro acredite que sua amada seja infiel por ser predestinada à luxúria, questiona a sua lealdade e projeta no outro o ciúme doentio, é o caos consequente do tormento dos jogos manipulativos.

O teor orgasmático prevalece, visto que é uma história sensual. A sexualidade é forte na trama, o filme expõe essa premissa ao colocar os personagens em seus anseios libidinosos. Othello nutre um desejo carnal por Desdemona, a relação dos dois é bastante sexual, ainda que o sentimento mútuo seja evidente. A postura e caracterização de Othello evidenciam seu comportamento sexualizado; um homem viril que não consegue conter sua libido direciona a uma moça delicada, mas dotada de feminilidade e sutil sensualidade. Desdemona representa a mulher de beleza hipnótica, mas com uma fragilidade que acende o desejo masculino — Shakespeare mostra como o homem sente tesão por mulheres frágeis, delicadas; e expõe a maneira como uma mulher consegue, através de sua beleza, dominar e confundir os instintos masculinos. O filme mostra essa paixão sexual de ambos, inclusive em cenas onde Othello beija Desdemona e causa constrangimento nas pessoas ao observarem tamanha expressão de sentimento e desejo carnal.

A tensão expressa no enredo deve-se aos sensos de inveja de Iago e ao ciúme doentio vivenciado por Othello ao ser manipulado, cruelmente. Interessante o poder das palavras, pois Iago usa da linguagem como sua poderosa arma de destruição, manipulação e alcance dos seus objetivos maliciosos. Ao interagir com os outros personagens, manipulando-os, Iago interage com o interlocutor — seu ódio, inveja e malícia são desnudas ao telespectador que sabe de suas intenções pérfidas. William Shakespeare cria um vilão tão inteligente, doentio e que provoca calafrios pela representação tão próxima da humanidade. Como saber se a pessoa ao lado é realmente o que se mostra ser? O embate psicológico do filme atua numa dimensão febril, ao passo que a trajetória dos personagens culmina num sufocante final trágico, típico da ode shakespeariana.

William Shakespeare sabe escrever sobre paixões, delírios e desejos obscuros humanos. O sentimentalismo exacerbado é sua característica, mas a dose sexual é bastante explorada em suas obras. A dimensão da tragédia é um traço de sua criatividade, mas o universo shakespeariano seduz por mostrar personagens tão libidinosos e emocionais. E este filme demonstra bem esse traço característico. A direção de Parker demonstra seu apuro, sensibilidade e cuidado com a essência da peça original. O filme impressiona pelo espetáculo interpretativo — Laurence Fishburne encarna seu Othello com uma agressão bruta, uma sensualidade soberba, talento nítido. Mas, é Kenneth Branagh que exerce uma interpretação visceral de um dos personagens mais imortais de Shakespeare; seu Iago concentra uma forte carga emocional e chocante, puro delírio. As cenas que ambos travam diálogos demonstram a dimensão psicológica e hiperdramática que a narrativa assume; num jogo interpretativo avassalador. O ser humano consegue sair do eixo por envolver-se aos destinos sexuais, do ciúme que cega ou mesmo pelas dores da inveja que não consegue conter. Uma pequena obra-prima incontestável, belíssimo filme trágico.


Othello (EUA / Reino Unido, 1995)
Direção de Oliver Parker
Roteiro de Oliver Parker, baseado na peça de William Shakespeare
Com Laurence Fishburne, Irène Jacob, Kenneth Branagh, Nathaniel Parker, Michael Sheen

24 opinaram | apimente também!:

O Neto do Herculano disse...

Ainda prefiro Orson Welles e Laurence Olivier.

Ricardo Morgan disse...

As tragédias de Shakespeare são sempre boas. Ainda não vi esse filme! Pelo texto parece ser muito bom! Abraço

Caique Gonçalves disse...

WS sabe compor muito bem seus personagens, inserindo neles um grau de complexidade pouco visto na literatura. Ainda não vi obras o adaptarem com maestria nas telas.

Abs,

Cinema Lato Sensu disse...

Também não vi esse filme, mas o elenco é bastante chamativo. Aliás, belo texto, como sempre.
Abraço!

renatocinema disse...

"Uma mulher consegue, através de sua beleza, dominar e confundir os instintos masculinos." citada no texto, é a frase mais pura da relação entre homem e mulher.

As mulheres dominam os homens assim como Shakespeare dominava a literatura e sua forma poética da tragédia.

Amo tragédia cultural; Nelson Rodrigues é meu representante nacional dessa linhagem. Mas, obviamente anos luz atrás do grande mestre autoro de Romeu e Julieta, minha obra predileta.

Apesar de seu belo texto e sua paixão pela produção o filme "Othelo" parece não ser a minha face predileta, não me despertando desejo algum.

Não sei dizer o motivo, sinceramente. Mas, a verdade é que essa produção apesar de tentar me seduzir, não me empolga uma visita.

Nelson L. Rodrigues disse...

É uma das grandes obras que ainda não li!

Vou ver este filme.


abraço e para parabéns pelo selo

Mirella Machado disse...

É uma das grandes obras que ainda não li! +1
E ainda não vi o filme =/
Mas me parece ser um ótimo enredo de se acompanhar, apesar da tensão que acontece por causa dos conflitos, o filme parece mesmo ser bem interessante. Ótima resenha Cris, abraços.

Kamila disse...

Assisti a este filme há muito tempo. Nem me lembrava muito dele. Foi bom ler seu texto para justamente poder retomar a obra. Parabéns!

Fábio Henrique Carmo disse...

Sou fã absoluto de William Shakespeare. Já tive a feliz oportunidade de ler Otelo e seu texto me despertou o interesse por ver este filme, que me parece uma boa adaptação. Grande abraço, Cristiano!

Lua Nova disse...

Não estou num momento "shakespeariano"...rs... suas obras são muito densas, trazem uma forte carga de emoções e estou muito sensível no momento. Mas, inegavelmente, é uma obra a ser vista e apreciada em detalhes. Texto, interpretação, cenários, música. E o farei... no momento certo.
Suas resenhas são imperdíveis, minuciosas sem revelar o que não deve.
Parabéns.
Beijokas e um lindo fds.

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Eu não vi esse também!

Mas o próximo vi. E AMO a Amélie!

Wallace Andrioli Guedes disse...

Não vi nenhuma versão de OTHELLO, nem essa, que é uma das mais famosas e fáceis de achar... na verdade, preciso ler mais Shakespeare.
Anyway, gosto muito do HAMLET protagonizado e dirigido pelo Branagh, e talvez goste desse OTHELLO aqui também, apesar de não tê-lo na direção. E sou meio que apaixonado pela Irene Jacob...

AninhaGR disse...

Adoro teu blog, comentários e sugestões no Twitter também. Curto muito cinema. Obrigada pelas gentis visitas no Pensamento Indelével. Beijo,

ANTONIO NAHUD disse...

Pulsa o cinema
por estar vivo!
Pulsa!
Cheio de emoção!
Gostei do blog. Vou segui-lo.
Abração

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

leo disse...

Nunca assisti ao filme e confesso que fiquei bastante curioso pra assistí-lo,costumo gostar de obras de Sheakespeare de apresentadas de forma atual.
E tenho mais nada pra falar dos seus textos então,abraços.

Wally disse...

De Shakespeare, tinha que ser um "belíssimo filme trágico", né? Adorei o texto e o elenco me atraiu. Vou procurar, certamente.

clique documental disse...

Olá vim desejar um feliz natal!

Shakespeare ? sem comentários hehe

bjos

História é Pop! disse...

Querido,
Estou passando para desejar um ótimo Natal
e um ano novo maravilho, repleto de ótimas postagens para nosso deleite
bjim

Mayara Bastos disse...

Shakespere é "awsome", rsrs. Mas, não conhecia esse, vou procurar!

Beijos! ;)

bruno knott disse...

É umas peças de Shakespeare que eu mais gosto.

Fiquei realmente curioso a respeito desse filme.

TH disse...

A interpretação do Iago pra mim é o que carrega essa adaptação. Minuciosa, detalhista...a gente tem impressão de estar diante de uma pessoa ruim de verdade, que poderia estar ao nosso lado, no nosso cotidiano.
Lembro que foi o aspecto que mais me "fisgou" no filme!

Amanda Aouad disse...

Acho Otelo das melhores peças de William Shakespeare, gosto muito desse mote de traição, culpa e dúvida. Pobre Desdemona. Mas, ainda não vi o filme. Vou conferir depois de ler o seu texto.

bjs

Thiago Quintella de Mattos disse...

Da sequência shakespearianas de Kenneth, a que mais gostei foi Henrique V, objeto até de um trabalho no mestrado, da disciplina Teoria Política IV, Pensar a Guerra. MAs foi em Othelo que me motivei a ler Shakespeare no original, uma ousadia bem cansativa, mas que me fez aprender muito a língua inglesa e a ser um exímio leitor de dicionários. O filme complementou muito bem o que havia lido com dificuldade. Permanceu a mesma angústia da leitura. Eu gostei muito desta filmagem. É engraçado nessas tragédias, sempre há um bode expiatório, que sofre a mais injusta das punições: a morte sem merecimento. Eu ainda não vi as perfomances de Lawrence Olivier de Wells, saco! Análise sua, para variar, brilhante!

AnnaStesia disse...

Iago é um dos meus personagens favoritos de Shakespeare (adoro volões!). Brannagh está ótimo, mas achei o filme bem mediano.

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